Pesquisa e análise das cartas indígenas escritas entre 1980 até 1989



Imagem símbolo da campanha pelos direitos indígenas na Constituinte.
Fotografia de Claudia Andujar (1984)


No processo de pesquisa sobre as cartas escritas por indígenas e endereçadas ao Brasil, especificamente no século XX e na década de 1980, tenho desenvolvido, inicialmente, um exercício de análise das cartas presentes no arquivo digital do Instituto Socioambiental (ISA), mapeando, investigando e transcrevendo as correspondências desse período para criar entradas que ofereçam resposta à pergunta: quem é o Brasil nas cartas dos indígenas? 

Essa questão e também as cartas que serão investigadas por mim estão inseridas na plataforma digital do projeto “As cartas dos Povos Indígenas ao Brasil” (CNPq/UFBA) e podem ser acessadas pelo site em https://cartasindigenasaobrasil.com.br/ano/ nas abas de seus respectivos anos na década de 1980. Estão presentes, até então, 17 cartas de autoria coletiva, escritas em suma por lideranças indígenas (tuxauas) de distintas etnias e 9 cartas individuais de Kokrenum Jopaipairé, Marçal Guarani, Carlos Karajá, Paulo Mendes Tikuna, Mário Juruna, Henrique dos Santos Karipuna, Davi Kopenawa Yanomami e Álvaro Tukano, endereçadas ao Brasil, suas autoridades, presidentes, ministros, governadores, líderes religiosos, constituintes, FUNAI e companheiros indígenas.

No plano de trabalho que estou desenvolvendo como bolsista de iniciação científica FAPESB do projeto As cartas dos Povos Indígenas ao Brasil (CNPq/UFBA) vinculado ao Núcleo de Estudo das Produções Autorais dos Povos Indígenas, pretendo, considerando as condições sanitárias atuais, expandir a pesquisa para outros acervos, digitais e físicos, como o Arquivo Nacional, a Biblioteca Nacional e o Museu do Índio, no Rio de Janeiro, a fim de criar uma linha do tempo das cartas escritas por indígenas que será disponibilizada no site do projeto, engendrada na reconstrução dessas narrativas presentes nas correspondências ao destinatário Brasil.

No Brasil, a década de 1980 ficou conhecida como a “década perdida” devido à sucessão de crises econômicas e instabilidades financeiras de um tempo marcado pela ditadura militar e pelos processos de redemocratização do país, que culminaram na Constituição de 1988. É possível, através das narrativas dos indígenas em suas cartas para não morrer (COSTA, 2021), traçar os caminhos percorridos por eles na luta pela construção de uma política indigenista que garantisse e efetivasse seus direitos a saúde, educação, cultura, segurança, religião, e sobretudo ao território.

As narrativas dos indígenas nas cartas de 1980, encontradas no arquivo digital do ISA, são originalmente manuscritas ou datilografadas e, para transposição ao acervo do projeto, necessitam ser transcritas. Consequentemente, no atual momento da pesquisa, as maiores dificuldades enfrentadas referem-se à essa transcrição — para melhor conservação do documento e preservação do texto, o critério na edição foi de não alterar suas formas e grafias. No entanto, a qualidade da digitalização do documento trabalhado interfere diretamente na compreensão do que está sendo relatado, pois, por vezes, torna os textos ilegíveis. Outra dificuldade está nas lacunas temporais deixadas pelas cartas não encontradas no arquivo do Instituto. Essas questões (documentos oriundos de manuscritos, lacunas temporais…) são indícios da época de sua produção, visto que as cartas atuais podem ser encontradas de outras maneiras, como em publicações na internet. Tais pontos também nos fazem pensar sobre as correspondências que não compõem o arquivo do ISA (seja por não estarem digitalizadas ou com o suporte material em estado crítico), o que direciona outras reflexões: quantas cartas se perderam durante esse processo? quantas correspondências não puderam sequer ser escritas? 

Por isso, chama atenção a carta de Raimundo Dionísio de 31 de outubro de 1988. Nela, há outra particularidade: a “carta-falada”. No acervo existe uma série de narrativas indígenas registradas em fitas cassetes que foram gravadas, traduzidas, transcritas e revisadas por não-indígenas. Chamadas por quem compõe o material textual de “carta-falada”, como a “Carta-falada ao Presidente da FUNAI”, elas anunciam seu tempo e a resistência desse registro. 

A carta-falada de Raimundo Dionísio, do povo Marúbo, endereçada ao presidente da FUNAI Íris Pedro de Oliveira, traduzida por Raimundo em abril de 1988, transcrita e revisada por pessoas não-indígenas e enviada em outubro do mesmo ano, conta a história da exploração econômica do território indígena Marúbo (no Parque do Javari) por peruanos e outras pessoas da região; e, para além disso, é documento/narrativa histórica, cujos intrincados procedimentos levantam uma série de questões que ainda precisam ser deslindadas.



Texto de: Natália Simões Lima

Referências:


Carta-falada ao presidente da Funai. Instituto Socioambiental. Disponível em: <https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/carta-falada-ao-presidente-da-funai>. Acesso em: 01 de junho de 2022.

COSTA, Suzane Lima. Uma década de cartas dos povos indígenas ao Brasil: correspondências de 2011-2020. Brasiliana: Journal for Brazilian Studies, v. 10, n. 1, p. 77-95.

Perfis biográficos de indígenas através da leitura de suas cartas.


Há, no site https://cartasindigenasaobrasil.com.br/, uma página destinada à junção de biografias sobre indígenas que escreveram cartas presentes no acervo do site, atualmente a aba conta com 20 biografias de diferentes remetentes, mas seu acervo se extenderá no futuro. Junto ao texto que relata um pouco das histórias, cartas que escreveram e atuações políticas dos remetentes, são também estampados seus rostos, formando uma espécie de galeria desses escritores que reivindicam e lutam pelos direitos dos seus povos e dos povos indígenas do Brasil.

O trabalho de escrita de biografias é parte fundamental do  projeto As Cartas dos Povos Indígenas ao Brasil e para a disseminação de conhecimentos acerca da atuação política dos povos indígenas, tendo em vista que ao ler as biografias, o olhar dos leitores e pesquisadores se direcionam aos remetentes das cartas, e a partir disso é possível não apenas ouvir a história do Brasil pelas perspectivas indígenas, mas também perceber como a escrita das cartas é, em diversos sentidos, uma autobiografia.

Até o presente momento, o acervo conta com perfis biográficos de Davi Kopenawa, Eloy Terena, Benki Piyãko, Gersem Baniwa, Nailton Pataxó, Azelene Kaingang, Graça Graúna, Jaider Esbell, Denilson Baniwa, Yakuy Tupinambá, Anápuáka Pataxó Hã Hã Hãe, Sônia Guajajara, Marcos Terena, Graciliana Wakanã, Maria Amaral, Ailton Krenak, Florêncio Vaz, Agnaldo Xukuru, Jairo Munduruku e Gabriel Gentil. O trabalho de escrita das biografias envolveu uma seleção dos remetentes das cartas e uma pesquisa sobre a vida  dos biografados. Ressalto, ainda, que a escrita de biografias que se baseia fortemente nas reflexões e reivindicações dos próprios escritores em suas cartas, o que apresenta uma perspectiva interessante nas reflexões sobre a relação entre o biográfico e a narrativa histórica, como pensado por Arfuch (2010), e como o biográfico e o autobiográfico podem apresentar essas narrativas (Costa, 2014).

Portanto, pensar biografias a partir do que os indígenas escrevem  é um exercício de inversão que estampa com rostos e histórias o que entende-se como espaço biográfico (ARFUCH, 2010). Como bolsista vinculada ao projeto, desenvolverei em parceria com os demais pesquisadores do Núcleo de estudos das produções autorais dos povos indígenas, os perfis de Damião Paridzané, Aruã Pataxó, Adenilton Tuxá, Raoni Metuktire, Álvaro Tukano, Pretinha Truká, Dário Vitório Kopenawa Yanomami e Joenia Wapichana, que escreveram cartas durante o período 1999 até 2020 com o objetivo de selecionar, a partir do acervo de cartas já existente, os remetentes para realizar um estudo biográfico, que consiste em escrever biografias sobre esses indígenas a partir da pesquisa de suas vidas e seus feitos, e, além disso, discutir e pensar a maneira como o lugar de remetente se apresenta nas cartas escritas por indígenas, e como a escrita individual e a escrita coletiva por muitas vezes cruzam caminhos, investigando o conceito de autoria nessas correspondências.



REFERÊNCIAS 


ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Tradução: Paloma Vidal. - Rio de Janeiro. EdUERJ, 2010.


COSTA, Suzane Lima. POVOS INDÍGENAS E SUAS NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS. Estudos Linguísticos e Literários, Salvador, 2014. Disponível em: https://cartasindigenasaobrasil.com.br/wp-content/uploads/2021/07/POVOS-INDIGENAS-E-SUAS-NARRATIVAS-AUTOBIOGRAFICAS.pdf. Acesso em: 1 jun. 2022.



Texto de: Beatriz Rodrigues



Retratos Imaginados dos Chefes Potiguaras do século XVII

Parte do projeto As cartas dos povos indígenas ao Brasil é produzir biografias a partir de um trabalho de montagem que envolve o imaginário, pesquisa documental e ficção. Na construção dos perfis dos Chefes Potiguaras, a ideia é construir suas biografias a partir de cartas que resultaram da atuação desses indígenas no período da história do “Brasil-Holandês”, entre 1633 e 1695. Dentre os registros de guerras e incursões, há documentos considerados oficiais e cartas produzidas por líderes indígenas que atuaram nas batalhas entre lusitanos e neerlandeses, como a Batalha dos Guararapes em Pernambuco. Entre os escritos estão produções de Antônio Paraupaba e Pedro Poty, além de cartas escritas por Diogo Pinheiro Camarão e Diogo da Costa para Pedro Poty, de Poty para Antônio Filipe Camarão e deste para outros indígenas aliados aos holandeses.

A atuação desses líderes indígenas foi soterrada, assim como suas vidas e seus rostos ausentados das histórias oficiais. Pesquisadores brasileiros como Teodoro Sampaio, Eduardo Navarro, Pedro Souto Maior e Bartira Barbosa lançaram-se na empreitada de tradução e movimentação das cartas trocadas entre os caciques nordestinos que fizeram parte das batalhas entre Portugal e Holanda no Brasil do século XVII, e partir da leitura e análise dessas cartas serão produzidos os perfis biográficos dos Chefes Potiguares, construindo ainda um rosto para esses líderes.

A reconstrução e, no que aqui cabe, a construção desses rostos através de um jogo de experimentação artística, busca tornar nova e viva a consciência (DEWEY, 2010) da existência desses indígenas narrando uma outra história do Brasil do século XVII. Uma vez que as cartas escritas por indígenas disponíveis no site cartasindigenasaobrasil.com.br já permite uma outra forma de acessar outras temporalidades através do fazer biográfico dos povos indígenas do Brasil, essa pesquisa tem o objetivo de extrapolar os limites do texto e unir literatura, história e arte para a criação dos perfis dos líderes potiguaras em um exercício de montagem e remontagem (DIDI-HUBERMAN, 2016),onde, através da linguagem imagética, possa se estender em múltiplas direções e dimensões (CUSICANQUI, 2015) retratos do que foram e poderiam ter sido esses chefes na história do Brasil.

A princípio serão montados os perfis de Pedro Poty, Antônio Paraupaba, Antônio Filipe Camarão e Diogo Pinheiro Camarão, talhando a imagem com as cartas como instrumento e o imaginário na conjectura dos elementos ausentes e separados pelo tempo (DIDI-HUBERMAN, 2016). Ainda, serão desenvolvidas análises acerca de como são criados os espaços biográficos na escrita (ARFUCH, 2010) e que movimentos são desenvolvidos no exercício de autoria desses indígenas. O resultado da montagem dos perfis imaginados dos Chefes Potiguaras que escreviam cartas no Brasil do século XVII ficará disponível para acesso na página Remetentes do site do projeto As Cartas dos Povos Indígenas ao Brasil, com o objetivo de criar um acervo dessas biografias e dar rosto aos remetentes, respondendo a questão "quem são os indígenas que escrevem cartas?".


Texto de: Érica Damasceno



Referências:

ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Tradução de Paloma Vidal. Rio de Janeiro; EdUERJ, 2010.

CUSICANQUI, Silvia Rivera. Sociologia de la imagen: ensayos. - 1a ed. - Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Tinta Limón, 2015.

DEWEY, john. Arte Como Experiência. (trad. Vera Ribeiro;. introd.: Abraham Kaplan). SÃO PAULO: MARTINS, 2010.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Remontar, remontagem (do tempo). Tradução: Milene Migliano; Revisão: Cícero de Oliveira. In: Caderno de Leituras n.47, 2016.



Cartas indígenas ao presidente Jair Bolsonaro: modos de morrer sendo índio no Brasil

Enquanto escrevo este texto, o Brasil sofre as consequências da pandemia causada pelo vírus Sars-CoV-2. Já ultrapassamos a abissal linha dos quinhentos mil mortos e continuamos convivendo com situações que esvaziam de significado a palavra crise, dado o seu uso quase diário. Nenhuma parte da vida social parece escapar do veredito de que vivemos uma situação extrema. A maior constatação disso é a morte. Cotidianamente choramos por conhecidos e desconhecidos, concidadãos que se vão pelas consequências da doença no corpo físico e coletivo. 

No entanto, esse luto, que deveria existir para cada vida perdida, pelo menos idealmente numa comunidade política, parece ser seletivo. Os mais atingidos pela doença no Brasil - negros, pobres e indígenas - não são lamentados da mesma forma nas esferas públicas. Suas narrativas e histórias de vida não aparentam valer tanto na nossa hierarquia social. Apesar do impacto desproporcional, os movimentos formados por essas pessoas insistem em classificar as ações do governo do Presidente Jair Messias Bolsonaro como políticas de morte, relacionando sua (não)atuação às consequências da Covid-19.

Consideram que o governo não age, em termos de medidas sanitárias de combate, controle e mitigação dos efeitos da pandemia, mas também afirmam que as ações governamentais na economia, meio ambiente e nas políticas sociais fragilizam suas comunidades, levando à invasão de territórios, aumento da fome e diminuição da solidariedade social (APIB, 2020b)

Há muito essas populações denunciam o Estado brasileiro como agente da morte. Ao contrário do preceituado pela doutrina jurídica no ocidente, a organização estatal torna-se detentora ilegítima do monopólio da coerção física, agindo contra a dignidade da vida. Embora essa formulação compreenda governos anteriores, o governo do atual presidente é o primeiro a ser definido por sua ação ilegal e não pela legitimidade conferida no processo democrático de escolhas de líderes. Essa incapacidade das minorias políticas em conferir legitimidade ao representante da nação e do Estado está relacionada à avaliação de um governo voltado para o que os indígenas chamam em suas cartas de “projetos de morte.”

Por meio da análise das correspondências indígenas ao Brasil, enviadas entre o período eleitoral de 2018 até junho de 2021, busco compreender o que significa o termo projetos de morte, utilizado pelos povos indígenas para definir o governo Bolsonaro. Para tanto, analiso os significados construídos sobre a ideia de projeto e a de morte, demonstrando como essas populações avaliam o governo, ao mesmo tempo que contribuem para a teoria política com sua forma de pensar as relações no interior de uma comunidade política, seja nas aldeias seja nas sociedades brasileiras.

Trecho do texto “Cartas indígenas ao presidente Jair Bolsonaro: modos de morrer sendo índio no Brasil”, de Rafael Xucuru-Kariri. Leia mais no: link

Cartas Indígenas para Outras Utopias.

O que faz de um gesto uma presença, um aparecimento, um acontecimento político? O que torna um gesto tão singular a ponto de produzir diferentes exercícios de imaginação: outras estampas, verticalidades, outras formas de pensamento e criação, uma utopia. Tem nome esse tipo de gesto? Tem nome para além de dizermos da sua condição de afetar e implicar o corpo de quem o produz, de quem o percebe, de quem de algum modo participa do seu movimento? Agamben fala dos gestos «como meio puro, [...] como exposição de uma medialidade sem fim e comunicação não de algo, mas de uma comunicabilidade, [o que] implica – ou, antes, exige – que tentemos definir de algum modo sua consistência ontológica» (2018: 4). Em Flusser, um gesto «é um movimento no qual se articula uma liberdade» (2014: 16). Gosto da ideia da liberdade, gosto também de pensar na vontade ontológica, no meio sem fim de um gesto, mas, para este ensaio, quero tratar da utopia como nome e paisagem do lugar-não-lugar de um gesto, como seu princípio e condição política.

O Sul Global, se pensado não como lugar, nem como episteme, mas como uma mirada, está cheio desses gestos. Um olhar contrageográfico não necessariamente trata a ideia do Sul Global aqui como metáfora para substituir a ideia de terceiro mundo ou mesmo como modo de rejeitar tudo o que está em produção em sua imaginada oposição – o norte. Não se trata de um retorno dos velhos pares conceituais explicando as excolônias do mundo, isso porque o aumento da desigualdade no mundo escancarou os muitos “Suis” que povoam o Norte e o contrário também. Penso, como Ballestrin, o Sul Global como uma poderosa imagem «para apresentar alternativas de futuro à globalização neoliberal, assim como para revitalizar diferentes lutas por descolonização» (2020: 2).

Há, no entanto, duas considerações necessárias para uma compreensão disso: 1. Apagar as luzes modernas que até então nos disseram dos gestos em suas práticas disciplinares; 2. Mirar para os componentes que movimentam e dão corpo a essa plástica. Mirar no escuro: primeiro gesto de utopia, primeira aproximação contrageográfica do que temos nas paisagens do sul-global. Muitos povos indígenas praticam e nos ensinam essa política da mirada. Nela, o escuro é um sonho político lúcido, capaz de movê-los a enfrentar um paredão fortemente armado de policiais federais com maracás, flechas artesanais, cantos e danças; capaz também de fazê-los escrever cartas ao Brasil e ao mundo, em diferentes línguas, para explicar o que é viver bem, para dizer como se sentem ameaçados e como querem sobreviver e morrer em suas terras ancestrais.

Há algum tempo pesquiso essas cartas: As cartas dos povos indígenas ao Brasil. São mais de setecentas correspondências produzidas entre os anos de 2000-2020. Há cartas do Povo Yanomami à nação brasileira, cartas do Povo Tupinambá ao Brasil e aos seus governantes, cartas dos Xavantes aos presidentes de Portugal e do Brasil, cartas dos Pataxó, Xukuru, Pankararé, Kaingang e de tantos outros povos que escolheram o gênero epistolar como via de acesso ao imaginário do povo brasileiro e do mundo. Há também cartas que colocam o estado brasileiro como interlocutor dos indígenas, mas que não são necessariamente endereçadas ao Brasil: são cartas para o mundo. Nessas cartas, o que se lê é quase sempre uma vontade de dizer aos órgãos internacionais como é viver e, principalmente, quais os modos não naturais de morrer sendo indígenas no Brasil - defender territórios ancestrais, sofrer violência cotidianamente, brigar pela demarcação de terras, ter e não ter aliados durante esse processo. São, desse modo, cartas que expressam a vida de comunidades em manifestos, repúdios e denúncias, mas são também cartas do silêncio, da escrita em fragmentos, de situações e personagens sem contextos prévios nas narrativas, no entanto, impregnadas de múltiplas vozes e rostos. 

Estudo esses gestos de escrever, suas composições, seus fins, suas repetições, seus movimentos de pedir e repudiar. Estudo e me pergunto se há um gesto mais utópico do que o de um povo escrever cartas para o Estado, para o mundo? Por que e para quem, afinal, eles escrevem? As cartas indígenas são para mim a própria mirada utópica: traduzem o Sul Global, questionam os limites e as expansões de seus modos de fazer saber, porque também são em si a crítica e a virada de suas onto-epistemes. Quero aqui apresentar essas cartas como gestos de utopia, descrever esses gestos como performances da presença dessa utopia nos trópicos. Para tanto, tratarei das cartas de autodemarcação de terras, escritas pelo povo Munduruku do território Daje Kapap Eypi, e publicadas no blog Autodemarcação dos Tapajós, como ponto de partida.


Texto por: Suzane Lima Costa

Confira o texto completo em Gestos de utopia no Sul Global: as cartas indígenas para o mundo


TEKOHA.

 

Em língua guarani, Tekoha é lugar; Tekó, o modo de ser e Bem Viver; Opy, a casa de reza. Combinados no espaço-tempo presente, Tekoha é a terra como lugar do corpo que recusa o não lugar. Mas o que é a terra? A Gaia? Um planeta? Matéria húmus? O que é um corpo? Uma conformação, uma carcaça, um aglomerado? O que é um lugar? O que é um não lugar? Enquanto o devir-humano devorava o mundo, tomando de assalto a vida, os lugares se emaranhavam, as rezas, muitas, perdiam-se em todas as direções; os corpos abriam valas. Estávamos novamente em guerra. Um holocausto, uma geofagia, uma impossibilidade de cura para gráficos ascendentes. Um vírus tomou de assalto o mundo e começou a devolver algumas coisas aos seus lugares. A casa era o lugar do confinamento, da expectativa pela devolução do normal, mas com a proliferação das mortes, a rua foi silenciando transeuntes. Reativamos a composteira, abrimos espaços para plantar a ver se a vida brotaria em respostas. Aílton Krenak (2019) tinha o dedo apontado para a Floresta, território de todas as fugas desde as primeiras invasões. Irônicas, as abóboras cresciam na nesga de terra do apartamento, indiferentes a tudo. O vírus procurava pelos humanos. Havia chegado a hora da humanidade, do humanismo que mata, defeca e fornica em nome de Deus. Pausa para assistir o vídeo sobre hortas caseiras. 

Interrompemos a programação geral para confessar que o medo é fabricado. Conforme tocávamos a terra, e ela respondia fazendo aderências às peles, deixávamos tudo para observar a movência do húmus em nossas mãos, entrega quente, úmida e habitada pelo lugar do encontro. Enquanto o céu caía, espalhávamos sementes pela terra, que respondia com sons de fios tecelados na palavra-lugar. Isso é o sonho do Bem Viver, dizia a terra enquanto engolia sorridente as suas sementes. Quem está aí, Tempo, a comer as sementes que Ivo (LIMA, 2019) não viu? O silencioso sorridente vinha do disco de Paul Simon (2018).

La fora, o céu despencava torrencialmente. Era a queda da Coroa, do capataz e do demônio canibal. O biopoder organizador da mercadoria. Aquele que tem nojo da Floresta, que coloca gado e soja, cana e milho transgênico, amálgama de Belo Monte para tudo queimar sem dó da vida. Aquele que mata e ri muito alto. Terracídio. Faz uma tomada do trator arrasando tudo e corta para o tormento da terra. Dá um close no ódio à mulher que sangra, e fecha nas mudas em germinação saindo de dentro da vagina. Só a imagem, sem legenda. A mãe da ninhada humana é a mesma de todos os mundanos sem lugar. Gente que se recusa ao não lugar.

O próximo passo é a devolução das palavras ao lugar de onde vieram – da terra, agência de outro modo de existir. Então, fizemos um desenho da mística da palavra. Repassamos todas as escalas do conjunto de letras e intervalos que a língua guarda. Havíamos acordado a necessidade de despatologizar a palavra. Desmedicalizar a voz e meditar sobre os usos psicotrópicos dos verbos, enquanto alguém contemplava as contradições que envolviam os desvios que nos atacavam durante o sonho. Educar a audição para ouvir além do óbvio é das coisas mais difíceis, mas, talvez, auscultando a saída do atoleiro em que estamos metidos, ofereça alguma possibilidade de cerzimento do território em que fica a casa de reza para mitigação dos sofrimentos que nos foram impostos com a dissipação das interações sociais que nos expandiam.


Texto de Cristina Araripe Fernandes


Resposta à Carta das mulheres Munduruku para o Brasil

Salvador Bahia, 08 de novembro de 2021

 

Caras mulheres Munduruku,


Li sua carta da I Assembleia de Mulheres Munduruku para nós, brasileiros, e me emocionei do início ao fim. Cada palavra ali escrita me atingiu de uma forma que não sei nomear. As emoções que surgiram em mim vão desde o desespero e o medo a um intenso questionamento do meu papel nisso tudo.

Não consigo nem sequer chegar a mensurar o tamanho de suas dores com tudo o que lhes acontece. Vocês estão resistindo desde seu nascimento por direitos básicos, pelo que lhes foi e lhes é tomado a preço de sangue dos seus. Isso dói. Me doeu muito ler e perceber que isso é uma marca constante em suas vidas. Contudo, a forma como mostraram sua força para enfrentar essa barbárie me deixou igualmente emocionada. A construção desta assembleia para continuar seu movimento de resistência, demonstra uma força admirável. Um importante movimento pelo que é de vocês, por suas vidas e vivências. Observo, todavia, que não haveria necessidade da articulação de um movimento se seus direitos e suas vidas fossem respeitados.

Queria lhes dizer que sinto muito por tudo isso. É lamentável e doloroso saber que vocês sofrem sem direito à terra que é de vocês e seguem sofrendo repressão por defenderem seus direitos, seus valores e suas crenças. É revoltante para mim, como uma pessoa que não faz parte de seus povos, verificar a forma cruel com a qual o Estado, a sociedade e o capital as tratam, desconsiderando suas vivências com seu território e desprezando as suas vidas. Imagino quais sentimentos vocês não devem ter diante do que vivenciam. Lamento que os ataques e as constantes lutas estejam entrelaçados às suas vidas e as suas vivências. Como pessoa preta, entendo o que é ser e ter um corpo descartável para a sociedade, talvez por compreender o lugar que a sociedade designou para mim, suas lutas me toquem de um modo muito intenso. 

Por tudo que lhes escrevi é que penso meu papel em suas lutas. Diante do que li e das emoções que o conteúdo de sua escrita me causou, tenho pensado em formas de contribuir para que vocês não precisem resistir sozinhas. Acredito que a mídia deveria ter um papel fundamental na difusão de seus movimentos de resistência e das suas vivências com suas terras, mas sei também que ela está à disposição do capital, não a nossa. No entanto, as redes sociais estão aí, e elas também têm um papel importante na divulgação de movimentos. Creio que já pensaram nisso, creio também que esse está longe de ser um grande passo de minha parte, porém é necessário começar de alguma forma. Esse país lhes pertence, cada centímetro quadrado e cúbico é seu, a sociedade precisa entender isso. Nosso papel como brasileiros não indígenas é o de lhes apoiar, de lutarmos juntos, de divulgar suas lutas, de eleger indígenas para cargos importantes a fim de mudar esse país e de cobrar do Estado a garantia de seus direitos.

Lhes escrevi de um lugar em que guardo sentimento de revolta, de empatia e de mudança. Lhes escrevi para lhes dizer que as admiro e as respeito, para lhes dizer que sei a importância do que fazem. Para que saibam que sei que vocês são importantes e donas deste país. Para lhes dizer que sua luta me marca emocional e politicamente. 


Admiro a força e a coragem com que enfrentam essa batalha. 


Vallerie Sabrinne

 

Essa carta foi uma resposta à carta das mulheres Munduruku, para acessá-la clique aqui:

Resposta à Carta Povos Apurinã e Aruak Baniwa para Jair Messias Bolsonaro

Salvador, 21 de Maio de 2021


Queridos povos Aruak Baniwa e Apurinã,


Tomei conhecimento da carta de vocês destinada ao nosso (des)governante Jair Messias Bolsonaro, e vim por meio desta prestar o meu total apoio. Desde o tempo da colonização que a voz do povo indígena é silenciada e contada por indivíduos que sequer chegaram perto de sentir suas dores, até mesmo pelos causadores de suas dores. Isso tem que acabar ! Vocês precisam ser escutados.

Demonstro total apoio a vocês porque sei da falta de preocupação e interesse do presidente da república com o seu povo, e também da comunidade a qual faço parte: preta, pobre e periférica. Para ele somos apenas números, não vidas. As suas terras, para ele são apenas mais uma forma de ganhar dinheiro e não importa pra ele o que terá de acontecer com as suas famílias, ou com o ecossistema e a natureza. Se for para fazer uso dela, ele será capaz de queimar e mandar matar.

Imagino o quão triste deve ser. De fora, sabemos do forte apego à ancestralidade que o seu povo tem e a sua relação sagrada com a terra. Mas em relação a isso, só vocês conseguem sentir a dor ao serem separadas delas. A democracia pregada por ele tem cor, classe social e gênero. Sem nenhum respeito às individualidades, procuro, cade a constituição que lhes garante proteção? 

Parece que todos que não tem um modo de vida capitalista estão atacando o governo. É realmente difícil viver assim, mas quero gostaria de dizer que admiro vocês. Admiro a resistência e a luta pelo que é importante e sagrado pra vocês, e juntos seguiremos resistindo a esse modelo de governo que preserva e incentiva esse tratamento desigual e que ataca os verdadeiros donos do território nacional. 


Toda minha admiração, força e apoio a vocês !


Amanda Fernandes.


Essa carta foi uma resposta à carta dos povos Aruak Baniwa e Apurinã, para acessá-la clique aqui:


Resposta à Carta de Graça Graúna para os Ancestrais

Salvador, 2021.


Querida Graça,


Chamo-te assim, de maneira carinhosa e emotiva, pois a sua carta “De Graça Graúna para os Ancestrais” me emocionou, e acredito que tudo que provoca bons sentimentos, se conecta conosco de maneira pessoal e significativa.

No dia em que é comemorado o “Dia Internacional dos Povos Indígenas”, você traz nessa carta relatos de luta e resistência do seu povo, que não é evidente apenas na história, mas está presente nos dias atuais.  Ademais, comenta  sobre os difíceis momentos que passamos com a pandemia de Covid-19 – tudo isso, conectando-se aos seus ancestrais, numa conversa sensível, que tem como marca fundamental a presença dos seus pais como guias a que se deve profundo respeito e admiração.

Assim, além da conversa com eles, mantendo os ensinamentos e conselhos dos seus pais como condutores para enfrentar os desafios, você apresenta escritos dos seus filhos, que também estão relacionados à ancestralidade, ao bem viver, ao convívio pleno com tudo e todos que nos rodeiam. A partir daí, pude notar o quanto o contato com as origens faz parte da vida dos povos indígenas, estando presente independente das gerações.

Quando vi você falar sobre as dificuldades dos povos indígenas no contexto pandêmico - em que a necessidade de trabalho e estudo não permitem fazer isolamento social como é recomendado, além do dificultoso acesso aos serviços - e da conversa com uma vizinha que ofende a maneira como você vive, senti tristeza.

 Não posso mensurar o que você passou -e ainda passa- pela reafirmação dos seus direitos (e dos povos indígenas): o da existência, do acesso às terras que foram usurpadas, da vida digna e de qualidade que deve ser respeitada por todos... Mas posso dizer que a sua carta me tocou. Para mim, é sempre significativo ver as falas de pessoas diferentes, e especialmente, dos povos indígenas, que me provocam diversas reflexões sobre um modo de viver que é completamente diferente do ocidental, branco e europeu – este último, como sabemos, tem afetado há séculos  a vivência no mundo, a exemplo do Brasil, de maneira usurpadora e violenta.

Por isso, só tenho a agradecer a você, querida Graça, por ter escrito essa carta que foi destinada aos indígenas, mas que ao chegar até mim, me fez ficar com os olhos marejados. A maneira sensível e cuidadosa com que você conversa com os seus pais, como você coloca a sabedoria/intuição como uns dos aspectos centrais na sua vida, a forma com que o seu espírito está em concordância com os seus ancestrais, através da resistência e coragem me deixaram maravilhada!

Sei que a luta dos povos indígenas – apesar de tantos anos- ainda não acabou; são reivindicações que praticamente não se alteram ao longo da história, pois o descompromisso da “sociedade brasileira”, que se manifesta na tentativa de ocultar os direitos do seu povo, é persistente. Tenho certeza de que vocês não deixarão de lutar, pois isso está relacionado às suas origens, aos séculos de resistência. A carta me deu a possibilidade de conhecer mais sobre os povos indígenas, ler sobre o que você tem a dizer sobre a ancestralidade. Essa escrita foi bastante pessoal, permeada de sentimentos e significados característicos, mas ao mesmo tempo, dialogou comigo pelo desassossego que você traz em relação à pandemia, à saudade daqueles que amamos, e também, quando fala da intuição, pois acredito nisso.

Para finalizar, tive a sensação de que você me trouxe uma memória que estava guardada, esquecida em algum lugar; um sentimento fraterno com a sua escrita e com todos os aspectos relacionados à sua vivência, à experiência, aos passeios na memória dos seus filhos- que também fazem parte da sua, e que se tornam a de seus pais...

Abraços fraternos - de uma pessoa que você não conhece, mas que aprendeu um pouco mais sobre você e os povos indígenas através da sua carta. Agradeço (mais uma vez) por sensibilizar, dialogar com alguns sentimentos e percepções de vida... Por trazer a tona o caminho de volta.

Isabela Costa Silva


Essa carta foi uma resposta à carta de Graça Graúna, para acessá-la clique aqui:

Resposta à Carta Povos Aruak Baniwa e Apurinã para Jair Bolsonaro

 Nazaré – Ba, 20 de maio de 2021

Prezados,

Ler essa carta me trouxe angústia. É absurdo que vocês precisem lutar e pedir apoio para aquilo que deveria ser concedido por direito. Saúde, educação, proteção ambiental e de povos nativos e minorias deveriam ser a prioridade dos governantes. Infelizmente, vê-se o contrário em nosso país. É comum observar indivíduos que esvaziam os significados de uma cultura, banalizam o pertencimento, identidade, espiritualidade, proteção e força dos povos indígenas.

A situação torna-se ainda mais grave quando um desses indivíduos é o atual presidente, Jair Bolsonaro, que não hesita em espalhar desinformação e discursos de ódio à população. Não há o mínimo de esforço para que os direitos básicos sejam garantidos. Os ataques às terras e povos indígenas continuam. Recentemente, os Yanomami foram atacados por garimpeiros armados e os Munduruku estão ameaçados. Enquanto isso, o país se afunda em mais mortes pela Covid-19, que afeta principalmente as populações subalternas e marginalizadas. O desmatamento segue aumentando, mas para eles é só o dinheiro que importa.

Há uma urgência pela demarcação de terras, para garantir a segurança e a preservação. O governo finge que não vê. Não há nenhum tipo de mobilização para impedir o genocídio, a destruição. A morte e os discursos racistas foram normalizados por uma parte da sociedade.

Acredito que muitas pessoas têm medo e ódio de tudo que foge das perspectivas vazias que semeiam. A luta dos outros não importa desde que não as atinjam. E é triste ver como o individualismo foi normalizado, sobretudo pelo capitalismo. Uma sociedade que enriquece os que já são ricos, pauperiza os pobres, dizima culturas e etnias que sofrem desde a invasão do Brasil. 

Refletir sobre isso me lembra uma entrevista de Ailton Krenak para “Vozes Da Floresta – A Aliança dos Povos da Floresta de Chico Mendes a Nossos Dias”. A entrevista em si, é bastante enriquecedora, mas há uma parte específica referente ao pensamento coletivo da comunidade indígena e do sistema capitalista como predatório, excludente e racista, que se encaixam nessa análise. O viver para si, a “cultura do ‘eu’”, tão presentes na atualidade, possibilitam ações que excluem e dizimam uma parte enquanto favorecem outra, e impedem escolhas coletivas que visam o bem geral promovendo equidade.

Sinto que o individualismo nos tira a vida e nos condiciona à apenas existência. Pois a vida é coletiva e é esse pensamento em grupo que a movimenta. O olhar para o outro e ajudar como for possível na luta. Espero que em algum momento a sociedade possa mudar, embora isso pareça cada vez mais distante. Espero que nós não indígenas possamos sempre nos atentar para as intempéries cometidas contra os seus povos, para a necessidade de proteger e cuidar dos próximos, da natureza e de tudo que provém dela, de respeitar os deuses, as forças, culturas, tradições. Que nos posicionemos contra as práticas de opressão, pois o silêncio, nesses casos, é o mesmo que coadunar com o opressor.


Fernanda Nogueira dos Santos


Essa carta foi uma resposta à carta dos povos Aruak Baniwa e Apurinã, para acessá-la clique aqui:

Resposta à Carta de Davi Kopenawa para a Procuradoria Geral da República

Mata de São João, 21 de Maio de 2021 

Querido Davi Kopenawa, 

Eu sinto muito. 

Eu genuinamente sinto muito. 

Pela violência que seu povo sofreu, pela invasão de seus corpos e seu território,  pelo desrespeito às suas tradições e ao seu luto. 

Os Estados Unidos da América e muitos dos seus pesquisadores são notadamente  conhecidos pela violação aos povos tradicionais e aos países ditos de terceiro  mundo. Usam nossos corpos, nossas terras e nossas plantas a seu bel prazer, em  prol de suas indústrias de capitalização e um sistema de banalização da morte.  

É enlouquecedor e revoltante. Não há outro sentimento a se ter.  

Mas eu espero que dentro da sua comunidade, na força da união do seu povo, vocês  estejam encontrando caminhos de cura para seus corações. 

Sabemos que a justiça divina se faz, mesmo que muitas vezes não sejamos  testemunhas dela. Mas disso não tenho dúvidas: o sangue de seus ancestrais será  honrado e a terra irá recebê-lo em louvação, para que retorne novamente ao todo e  se torne semente de vida. 

Te desejo calma e paz, por mais que a espera seja desconcertante. Que os teus  antigos se preencham de esperança e os mais novos amadureçam em consciência  pela defesa dos irmãos. 

Te desejo, especialmente, que nem mais uma gota do seu sangue se derrame em  vão. 

Pois que frio nenhum pode arrefecer a chama viva do rubro fluido de quem é vespa feroz, 

ser humano da fonte. 

Um abraço. 

Cura

Camila Machado


Essa carta foi uma resposta à carta de Davi Kopenawa, para acessá-la clique aqui:

De Davi Kopenawa para a Procuradoria Geral da República.


Resposta à Carta das mulheres indígenas de Brasília para o Brasil

Salvador-Bahia, 04 novembro de 2021. 

Para começar, espero que vocês estejam bem e com saúde. 

 Eu Andréia Nascimento de Lima, mulher negra, brasileira, veio por meio desta carta, dizer o quanto estou triste e revoltada por tudo que anda ocorrendo no Brasil, aliás por  tudo que vem acontecendo há anos. A falta de respeito, a desumanidade, a violência com  os povos indígenas e com a população negra do nosso país. 

 Por isso estou escrevendo esta carta para dizer que não desistam irmãs indígenas, eu  não irei deixar de continuar lutando pelos nossos direitos. Tal como afirma a líder  indígena Sônia Guajajara, apoiar a causa indígena hoje é lutar pela nossa própria  existência. Dessa forma, eu e vocês irmãs indígenas vamos continuar lutando contra essa  sociedade doente, machista, misógina, racista, que sem enxergar flerta com o fascismo e  cada vez mais destrói os direitos sociais e extermina nós mulheres. Infelizmente,estamos diante de um governo genocida, autoritário, inimigo da ciência e da educação, que tem  mirado na vida de nós mulheres sobretudo as indígenas, as negras e as periféricas. 

 Estão mirando na nossa dignidade, mas eu só peço que vocês sejam fortes,os brancos  que se acham donos de tudo, não podem calar nossas vozes. Irmãs, exterminaram muitos  dos nossos ancestrais, mataram e continuam exterminando nossos povos, porém a nossa  voz eles não vão silenciar. Continuaremos por nós, por todas nós: eles combinaram de  nos matar, nós combinamos de viver. Quero dizer também que estou aprendendo a ter  potência do corpo, cultivando a minha ancestralidade igual à vocês, porque vocês povos  indígenas sabem que as coisas estão dentro, não fora de nós.  

 Além disso, irmãs indígenas a cada dia que passa eu estou indo contra essa lógica  ridícula capitalista que diz que a vida tem que ser utilitária e consumista. Como cita o  escritor Ailton Krenak, a vida não é para ser útil, a vida é tão maravilhosa que a mente  das pessoas tenta dar uma utilidade para ela, mas a vida é fruição, a vida é uma dança.  Desse modo, nós temos que ter coragem de sermos radicalmente vivas/os e não  negociarmos nossa sobrevivência.  

 Ademais, quero agradecer por vocês protegerem e preservarem tão bem a mãe natureza, porque vocês sabem que ela é parte de nós e sem ela tampouco existiríamos. Mulheres indígenas do Brasil, sonho com o dia que nós possamos viver em paz, em uma  sociedade que respeite nossos corpos e nossa dignidade. Por fim, irmãs desejo muita

saúde e forças. Não vamos nos calar, as nossas vozes continuarão ecoando em todos os  cantos do Brasil, seremos resistência. 

Direitos humanos e Demarcação das terras indígenas já!!!! 

Queridas parentes recebam esta carta com amor e gratidão. 

Obrigada, a todas/es vocês! 

Atenciosamente, 

Andréia Nascimento de Lima 

Graduanda em Serviço Social 

Universidade Federal da Bahia


Essa carta foi uma resposta à carta das mulheres indígenas de Brasília, para acessá-la clique aqui:

Mulheres indígenas para Brasil.


Resposta à Carta das lideranças indígenas para os povos do planeta

17.11.2021

Carta resposta as lideranças indígenas

Olá parentes, venho por meio desta carta somar minha força e voz para dizer junto: A NOSSA TERRA NÃO PODE SER ROUBADA! Nossa mãe Terra clama por respeito e reparação histórica a tudo que os seres humanos vêm devastando durante séculos. Eu sinto a dor de vocês, minhas irmãs e irmãos, eu sinto a dor da nossa mãe Terra, eu ouço seu chamado e me somo nos rezos com o cachimbo sagrado pedindo forças e harmonia entre todos os seres desse planeta.

Estou na caminhada de retomada das minhas raízes indígenas, cavando cada vez mais fundo para honrar minhas antepassadas e lutar ao lado dos povos originários dessa terra Abya Ayala. Contem comigo parentes, posso ser só mais uma sobrevivente do genocídio do nosso povo, mas somando nossas forças somos como uma gigante floresta e nossa força é ancestral! 

Aproveito para lhes enviar uma poesia de minha autoria, escrita em novembro de 2016:


Identidade indígena


Minha identidade indígena que vivia adormecida: Acordou!

Acordei!

Sabendo que meus povos foram enganados

Violentados

Roubados

Mortos

Massacrados

Apagados da história desse país.

Me digo indígena

Me descubro indígena

sabendo que fui colonizada branca

educada como branca

enganada como branca

alienadamente branca que não sou!

Minha identidade indígena acorda sabendo que indígena foi o povo branco quem nomeou achando que pisavam na Índia.

Não pisaram lá, mas nos pisaram aqui

Colonizaram-nos, mas não somos suas colônias

Nossa identidade indígena

Brasileira

Guerreira

Em harmonia com a natureza

ainda respira dentro de nós

Nossas antepassadas nos fortalecem

fertilizam a terra

fluem nos rios e mares

purificam o ar

nos aquecem com o fogo

nos curam com as matas.

Nossa identidade indígena

em todos os elementos da natureza

em harmonia, em sincronia

se organiza na sociedade atual

buscando forças para viver.

Resistimos, estamos de pé

Sabemos do sagrado, do corpo, da mente

da alma, da natureza, do amor...

Nossa identidade indígena viva: Vive!

Sempre estivemos aqui!


Maura Tatiane Nascimento de Oliveira


Essa carta foi uma resposta à carta das lideranças indígenas, para acessá-la clique aqui:

De lideranças indígenas para os povos do planeta.