Pesquisa e análise das cartas indígenas escritas entre 1980 até 1989



Imagem símbolo da campanha pelos direitos indígenas na Constituinte.
Fotografia de Claudia Andujar (1984)


No processo de pesquisa sobre as cartas escritas por indígenas e endereçadas ao Brasil, especificamente no século XX e na década de 1980, tenho desenvolvido, inicialmente, um exercício de análise das cartas presentes no arquivo digital do Instituto Socioambiental (ISA), mapeando, investigando e transcrevendo as correspondências desse período para criar entradas que ofereçam resposta à pergunta: quem é o Brasil nas cartas dos indígenas? 

Essa questão e também as cartas que serão investigadas por mim estão inseridas na plataforma digital do projeto “As cartas dos Povos Indígenas ao Brasil” (CNPq/UFBA) e podem ser acessadas pelo site em https://cartasindigenasaobrasil.com.br/ano/ nas abas de seus respectivos anos na década de 1980. Estão presentes, até então, 17 cartas de autoria coletiva, escritas em suma por lideranças indígenas (tuxauas) de distintas etnias e 9 cartas individuais de Kokrenum Jopaipairé, Marçal Guarani, Carlos Karajá, Paulo Mendes Tikuna, Mário Juruna, Henrique dos Santos Karipuna, Davi Kopenawa Yanomami e Álvaro Tukano, endereçadas ao Brasil, suas autoridades, presidentes, ministros, governadores, líderes religiosos, constituintes, FUNAI e companheiros indígenas.

No plano de trabalho que estou desenvolvendo como bolsista de iniciação científica FAPESB do projeto As cartas dos Povos Indígenas ao Brasil (CNPq/UFBA) vinculado ao Núcleo de Estudo das Produções Autorais dos Povos Indígenas, pretendo, considerando as condições sanitárias atuais, expandir a pesquisa para outros acervos, digitais e físicos, como o Arquivo Nacional, a Biblioteca Nacional e o Museu do Índio, no Rio de Janeiro, a fim de criar uma linha do tempo das cartas escritas por indígenas que será disponibilizada no site do projeto, engendrada na reconstrução dessas narrativas presentes nas correspondências ao destinatário Brasil.

No Brasil, a década de 1980 ficou conhecida como a “década perdida” devido à sucessão de crises econômicas e instabilidades financeiras de um tempo marcado pela ditadura militar e pelos processos de redemocratização do país, que culminaram na Constituição de 1988. É possível, através das narrativas dos indígenas em suas cartas para não morrer (COSTA, 2021), traçar os caminhos percorridos por eles na luta pela construção de uma política indigenista que garantisse e efetivasse seus direitos a saúde, educação, cultura, segurança, religião, e sobretudo ao território.

As narrativas dos indígenas nas cartas de 1980, encontradas no arquivo digital do ISA, são originalmente manuscritas ou datilografadas e, para transposição ao acervo do projeto, necessitam ser transcritas. Consequentemente, no atual momento da pesquisa, as maiores dificuldades enfrentadas referem-se à essa transcrição — para melhor conservação do documento e preservação do texto, o critério na edição foi de não alterar suas formas e grafias. No entanto, a qualidade da digitalização do documento trabalhado interfere diretamente na compreensão do que está sendo relatado, pois, por vezes, torna os textos ilegíveis. Outra dificuldade está nas lacunas temporais deixadas pelas cartas não encontradas no arquivo do Instituto. Essas questões (documentos oriundos de manuscritos, lacunas temporais…) são indícios da época de sua produção, visto que as cartas atuais podem ser encontradas de outras maneiras, como em publicações na internet. Tais pontos também nos fazem pensar sobre as correspondências que não compõem o arquivo do ISA (seja por não estarem digitalizadas ou com o suporte material em estado crítico), o que direciona outras reflexões: quantas cartas se perderam durante esse processo? quantas correspondências não puderam sequer ser escritas? 

Por isso, chama atenção a carta de Raimundo Dionísio de 31 de outubro de 1988. Nela, há outra particularidade: a “carta-falada”. No acervo existe uma série de narrativas indígenas registradas em fitas cassetes que foram gravadas, traduzidas, transcritas e revisadas por não-indígenas. Chamadas por quem compõe o material textual de “carta-falada”, como a “Carta-falada ao Presidente da FUNAI”, elas anunciam seu tempo e a resistência desse registro. 

A carta-falada de Raimundo Dionísio, do povo Marúbo, endereçada ao presidente da FUNAI Íris Pedro de Oliveira, traduzida por Raimundo em abril de 1988, transcrita e revisada por pessoas não-indígenas e enviada em outubro do mesmo ano, conta a história da exploração econômica do território indígena Marúbo (no Parque do Javari) por peruanos e outras pessoas da região; e, para além disso, é documento/narrativa histórica, cujos intrincados procedimentos levantam uma série de questões que ainda precisam ser deslindadas.



Texto de: Natália Simões Lima

Referências:


Carta-falada ao presidente da Funai. Instituto Socioambiental. Disponível em: <https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/carta-falada-ao-presidente-da-funai>. Acesso em: 01 de junho de 2022.

COSTA, Suzane Lima. Uma década de cartas dos povos indígenas ao Brasil: correspondências de 2011-2020. Brasiliana: Journal for Brazilian Studies, v. 10, n. 1, p. 77-95.

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