Flutuações


 Érica Damasceno das Mercês¹

Esses dias, um conhecido contou-me que certa vez procurava pela vizinhança alguma planta para fazer chá, perguntava aos vizinhos sobre mudas de erva-cidreira, capim-santo, quioiô, ou qualquer outra que estivesse saudável o suficiente para fazer mudas e que pudesse ser fervida com água sem causar intoxicação. Depois de comemorar o achamento de algumas das plantas medicinais que procurava, foi impelido por um dos vizinhos que lhe perguntou: “agora você entendeu porque não dá pra ter um jardim só de flor?”. Ele ficou chateado com a provocação e respondeu sobre a importância até das flores, mas admitiu que o vizinho poderia estar certo.

Quando ouvi os comentários e a conclusão sobre a história, não pude deixar de pensar sobre o senso de utilidade que atribuímos às coisas. Talvez as flores não ajudassem no tratamento de dores do corpo, mas trouxessem o que compunha o ambiente necessário para o desenvolvimento das demais plantas medicinais ou frutíferas, isso dependeria do ponto de observação da situação. Com frequência minhas reflexões acadêmicas se cruzam com conversas assim, abrindo as dimensões para outras questões como as flutuações da e na literatura.

Nas páginas de Tardes de Agosto², o escritor, artista, intelectual, indígena, e contador de histórias Jaider Esbell conta de um livro deixado por alguém que leu e odiou, encontrado por outro alguém que não entendeu e, sobre as folhas secas, logo foi devorado pelos cupins, já que “para eles, o livro não era livro, o livro não era lixo, não era triste, tinha um gosto bom, de celulose”. O debate sobre o lugar da literatura e outras artes atravessa os tempos e as dimensões do saber, me interessa conduzir os olhares às tais flutuações produzidas no estiramento dos sentidos da literatura e da arte. 

Os cupins e formigas são importantes para o equilíbrio de ecossistemas naturais. Os primeiros atuam aumentando a taxa de sobrevivência das plantas através da decomposição de matéria e reviramento do solo, as formigas ajudam a espalhar a matéria orgânica e a arejar o solo para o surgimento de novas plantas. Assim como o livro foi devorado pelos cupins na história do Jaider, a literatura vem sendo devorada pelos grupos minorizados e transmutada em diferentes modos e funcionamentos, como pesquisadores nos cabe espalhar e arejar o solo para o desenvolvimento de outras reflexões.

Durante os anos de 2018 e 2019, Jaider Esbell devorou as 400 páginas do volume da Galeria Delta da Pintura Universal, preenchendo-as de mensagens e desenhos feitos com caneta, dando vida a Carta ao Velho Mundo³. Transmutando o livro em suporte para recontar a colonização, o artista subverte a linearidade histórica na carta, pontuando denúncias sobrepostas às pinturas retratadas no volume. Como os cupins, Jaider Esbell revirou o solo em que a narrativa sobre a arte, a história e a colonização foi criada, com desenhos que retratam animais e saberes do povo Makuxi, os indígenas rasuraram a história da arte, ao mesmo tempo em que o movimento coloca o próprio livro em pé de reutilização para ser transformado pelos que vieram antes e também vêm depois.

“A magia da arte está em que, nesse processo de recriação, ela mostra a realidade como passível de ser transformada, dominada e tornada brinquedo”, mais que magia, a beleza e sua funcionalidade estão nesses movimentos. Embora para algumas pessoas os livros sejam apenas livros, assim como as flores, os cupins e as formigas, eles fazem parte de um ecossistema em funcionamento e constante modificação, as flutuações que envolvem as coisas do mundo dependem do olhar que se lança sobre elas. No final até a erva-cidreira dá flor e a lavanda vira chá dependendo da necessidade, assim como livros viram telas e a arte instrumento.




Notas

¹ Mestranda em Literatura e Cultura (PPGLitCult/UFBA).
² ESBELL, Jaider. Tardes de Agosto Manhãs de Setembro Noites de Outubro, 2013, p. 27.
³ ESBELL, Jaider. Carta ao Velho Mundo. 20 de março de 2019. Disponível aqui.
FISCHER, Ernest. A necessidade da arte. 9. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1987, p. 252.








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