TEKOHA.

 

Em língua guarani, Tekoha é lugar; Tekó, o modo de ser e Bem Viver; Opy, a casa de reza. Combinados no espaço-tempo presente, Tekoha é a terra como lugar do corpo que recusa o não lugar. Mas o que é a terra? A Gaia? Um planeta? Matéria húmus? O que é um corpo? Uma conformação, uma carcaça, um aglomerado? O que é um lugar? O que é um não lugar? Enquanto o devir-humano devorava o mundo, tomando de assalto a vida, os lugares se emaranhavam, as rezas, muitas, perdiam-se em todas as direções; os corpos abriam valas. Estávamos novamente em guerra. Um holocausto, uma geofagia, uma impossibilidade de cura para gráficos ascendentes. Um vírus tomou de assalto o mundo e começou a devolver algumas coisas aos seus lugares. A casa era o lugar do confinamento, da expectativa pela devolução do normal, mas com a proliferação das mortes, a rua foi silenciando transeuntes. Reativamos a composteira, abrimos espaços para plantar a ver se a vida brotaria em respostas. Aílton Krenak (2019) tinha o dedo apontado para a Floresta, território de todas as fugas desde as primeiras invasões. Irônicas, as abóboras cresciam na nesga de terra do apartamento, indiferentes a tudo. O vírus procurava pelos humanos. Havia chegado a hora da humanidade, do humanismo que mata, defeca e fornica em nome de Deus. Pausa para assistir o vídeo sobre hortas caseiras. 

Interrompemos a programação geral para confessar que o medo é fabricado. Conforme tocávamos a terra, e ela respondia fazendo aderências às peles, deixávamos tudo para observar a movência do húmus em nossas mãos, entrega quente, úmida e habitada pelo lugar do encontro. Enquanto o céu caía, espalhávamos sementes pela terra, que respondia com sons de fios tecelados na palavra-lugar. Isso é o sonho do Bem Viver, dizia a terra enquanto engolia sorridente as suas sementes. Quem está aí, Tempo, a comer as sementes que Ivo (LIMA, 2019) não viu? O silencioso sorridente vinha do disco de Paul Simon (2018).

La fora, o céu despencava torrencialmente. Era a queda da Coroa, do capataz e do demônio canibal. O biopoder organizador da mercadoria. Aquele que tem nojo da Floresta, que coloca gado e soja, cana e milho transgênico, amálgama de Belo Monte para tudo queimar sem dó da vida. Aquele que mata e ri muito alto. Terracídio. Faz uma tomada do trator arrasando tudo e corta para o tormento da terra. Dá um close no ódio à mulher que sangra, e fecha nas mudas em germinação saindo de dentro da vagina. Só a imagem, sem legenda. A mãe da ninhada humana é a mesma de todos os mundanos sem lugar. Gente que se recusa ao não lugar.

O próximo passo é a devolução das palavras ao lugar de onde vieram – da terra, agência de outro modo de existir. Então, fizemos um desenho da mística da palavra. Repassamos todas as escalas do conjunto de letras e intervalos que a língua guarda. Havíamos acordado a necessidade de despatologizar a palavra. Desmedicalizar a voz e meditar sobre os usos psicotrópicos dos verbos, enquanto alguém contemplava as contradições que envolviam os desvios que nos atacavam durante o sonho. Educar a audição para ouvir além do óbvio é das coisas mais difíceis, mas, talvez, auscultando a saída do atoleiro em que estamos metidos, ofereça alguma possibilidade de cerzimento do território em que fica a casa de reza para mitigação dos sofrimentos que nos foram impostos com a dissipação das interações sociais que nos expandiam.


Texto de Cristina Araripe Fernandes


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