Carta de Rafael Xucuru-Kariri para Jaider Esbell.

02.11.2021 

Hoje é dia dos mortos e acabo de receber a notícia sobre a sua passagem. Quando alguém me diz que um parente se foi, minha mente logo é assombrada pelas imagens de assassinato, covid, suicídio ou alguma doença evitável se vivêssemos com um mínimo de dignidade nessas paragens. Me assombra mais ainda quando o interlocutor sempre confirma algum desses quatro presságios. Parece que a morte é sempre política entre nós, nunca natural. Morremos de luta, de abandono ou de tristeza. Que pena saber da sua passagem. Um artista tão potente e com tanto a dizer ao mundo. Escrevemos e estudamos sua obra há um tempo já. E sabíamos que em breve o mundo concordaria com a genealidade que víamos no seu trabalho. Isso já estava acontecendo nas bienais, nos prêmios e nos tantos olhares de espanto, ódio, beleza e alegria que suas obras causavam. Você, Denilson Baniwa, Arissana Pataxó, Daira Tucano e tantos outros e outras estavam encantando o mundo, mostrando o que dizemos, como vc falava, há mais de 500 anos: estamos aqui e não vamos a lugar algum. Essa prática que provoca tanta violência do Presidente e seus capangas, das instituições e da sociedade democrática que, ironicamente, busca eliminar a memória étnica. Merecem mesmo esse nome? Como você disse, só teremos democracia quando todas as terras indígenas forem demarcadas. Vc se tornou um encantado, que na tradição Xucuru-Kariri, orienta a luta e os lutadores pela existência indígena. Vc nos enche de coragem, beleza e estímulo. Eu sei disso tudo, e em pouco tempo essa será a imagem que terei de ti, mas hoje só consigo sentir tristeza. Sabe aquela estatística que diz que só 50% de nós conseguirá chegar aos 50 anos? Hoje ela tem cara, tem o rosto de Jaider Esbell, tem a potência e toda a tristeza que sentimos por alguém que morre de luta, que enfrentou tudo e todos pela causa indígena. Boa passagem meu parente. Seu encantamento já está em nós.

Rafael Xucuru-Kariri