Cartas indígenas ao presidente Jair Bolsonaro: modos de morrer sendo índio no Brasil

Enquanto escrevo este texto, o Brasil sofre as consequências da pandemia causada pelo vírus Sars-CoV-2. Já ultrapassamos a abissal linha dos quinhentos mil mortos e continuamos convivendo com situações que esvaziam de significado a palavra crise, dado o seu uso quase diário. Nenhuma parte da vida social parece escapar do veredito de que vivemos uma situação extrema. A maior constatação disso é a morte. Cotidianamente choramos por conhecidos e desconhecidos, concidadãos que se vão pelas consequências da doença no corpo físico e coletivo. 

No entanto, esse luto, que deveria existir para cada vida perdida, pelo menos idealmente numa comunidade política, parece ser seletivo. Os mais atingidos pela doença no Brasil - negros, pobres e indígenas - não são lamentados da mesma forma nas esferas públicas. Suas narrativas e histórias de vida não aparentam valer tanto na nossa hierarquia social. Apesar do impacto desproporcional, os movimentos formados por essas pessoas insistem em classificar as ações do governo do Presidente Jair Messias Bolsonaro como políticas de morte, relacionando sua (não)atuação às consequências da Covid-19.

Consideram que o governo não age, em termos de medidas sanitárias de combate, controle e mitigação dos efeitos da pandemia, mas também afirmam que as ações governamentais na economia, meio ambiente e nas políticas sociais fragilizam suas comunidades, levando à invasão de territórios, aumento da fome e diminuição da solidariedade social (APIB, 2020b)

Há muito essas populações denunciam o Estado brasileiro como agente da morte. Ao contrário do preceituado pela doutrina jurídica no ocidente, a organização estatal torna-se detentora ilegítima do monopólio da coerção física, agindo contra a dignidade da vida. Embora essa formulação compreenda governos anteriores, o governo do atual presidente é o primeiro a ser definido por sua ação ilegal e não pela legitimidade conferida no processo democrático de escolhas de líderes. Essa incapacidade das minorias políticas em conferir legitimidade ao representante da nação e do Estado está relacionada à avaliação de um governo voltado para o que os indígenas chamam em suas cartas de “projetos de morte.”

Por meio da análise das correspondências indígenas ao Brasil, enviadas entre o período eleitoral de 2018 até junho de 2021, busco compreender o que significa o termo projetos de morte, utilizado pelos povos indígenas para definir o governo Bolsonaro. Para tanto, analiso os significados construídos sobre a ideia de projeto e a de morte, demonstrando como essas populações avaliam o governo, ao mesmo tempo que contribuem para a teoria política com sua forma de pensar as relações no interior de uma comunidade política, seja nas aldeias seja nas sociedades brasileiras.

Trecho do texto “Cartas indígenas ao presidente Jair Bolsonaro: modos de morrer sendo índio no Brasil”, de Rafael Xucuru-Kariri. Leia mais no: link

Cartas Indígenas para Outras Utopias.

O que faz de um gesto uma presença, um aparecimento, um acontecimento político? O que torna um gesto tão singular a ponto de produzir diferentes exercícios de imaginação: outras estampas, verticalidades, outras formas de pensamento e criação, uma utopia. Tem nome esse tipo de gesto? Tem nome para além de dizermos da sua condição de afetar e implicar o corpo de quem o produz, de quem o percebe, de quem de algum modo participa do seu movimento? Agamben fala dos gestos «como meio puro, [...] como exposição de uma medialidade sem fim e comunicação não de algo, mas de uma comunicabilidade, [o que] implica – ou, antes, exige – que tentemos definir de algum modo sua consistência ontológica» (2018: 4). Em Flusser, um gesto «é um movimento no qual se articula uma liberdade» (2014: 16). Gosto da ideia da liberdade, gosto também de pensar na vontade ontológica, no meio sem fim de um gesto, mas, para este ensaio, quero tratar da utopia como nome e paisagem do lugar-não-lugar de um gesto, como seu princípio e condição política.

O Sul Global, se pensado não como lugar, nem como episteme, mas como uma mirada, está cheio desses gestos. Um olhar contrageográfico não necessariamente trata a ideia do Sul Global aqui como metáfora para substituir a ideia de terceiro mundo ou mesmo como modo de rejeitar tudo o que está em produção em sua imaginada oposição – o norte. Não se trata de um retorno dos velhos pares conceituais explicando as excolônias do mundo, isso porque o aumento da desigualdade no mundo escancarou os muitos “Suis” que povoam o Norte e o contrário também. Penso, como Ballestrin, o Sul Global como uma poderosa imagem «para apresentar alternativas de futuro à globalização neoliberal, assim como para revitalizar diferentes lutas por descolonização» (2020: 2).

Há, no entanto, duas considerações necessárias para uma compreensão disso: 1. Apagar as luzes modernas que até então nos disseram dos gestos em suas práticas disciplinares; 2. Mirar para os componentes que movimentam e dão corpo a essa plástica. Mirar no escuro: primeiro gesto de utopia, primeira aproximação contrageográfica do que temos nas paisagens do sul-global. Muitos povos indígenas praticam e nos ensinam essa política da mirada. Nela, o escuro é um sonho político lúcido, capaz de movê-los a enfrentar um paredão fortemente armado de policiais federais com maracás, flechas artesanais, cantos e danças; capaz também de fazê-los escrever cartas ao Brasil e ao mundo, em diferentes línguas, para explicar o que é viver bem, para dizer como se sentem ameaçados e como querem sobreviver e morrer em suas terras ancestrais.

Há algum tempo pesquiso essas cartas: As cartas dos povos indígenas ao Brasil. São mais de setecentas correspondências produzidas entre os anos de 2000-2020. Há cartas do Povo Yanomami à nação brasileira, cartas do Povo Tupinambá ao Brasil e aos seus governantes, cartas dos Xavantes aos presidentes de Portugal e do Brasil, cartas dos Pataxó, Xukuru, Pankararé, Kaingang e de tantos outros povos que escolheram o gênero epistolar como via de acesso ao imaginário do povo brasileiro e do mundo. Há também cartas que colocam o estado brasileiro como interlocutor dos indígenas, mas que não são necessariamente endereçadas ao Brasil: são cartas para o mundo. Nessas cartas, o que se lê é quase sempre uma vontade de dizer aos órgãos internacionais como é viver e, principalmente, quais os modos não naturais de morrer sendo indígenas no Brasil - defender territórios ancestrais, sofrer violência cotidianamente, brigar pela demarcação de terras, ter e não ter aliados durante esse processo. São, desse modo, cartas que expressam a vida de comunidades em manifestos, repúdios e denúncias, mas são também cartas do silêncio, da escrita em fragmentos, de situações e personagens sem contextos prévios nas narrativas, no entanto, impregnadas de múltiplas vozes e rostos. 

Estudo esses gestos de escrever, suas composições, seus fins, suas repetições, seus movimentos de pedir e repudiar. Estudo e me pergunto se há um gesto mais utópico do que o de um povo escrever cartas para o Estado, para o mundo? Por que e para quem, afinal, eles escrevem? As cartas indígenas são para mim a própria mirada utópica: traduzem o Sul Global, questionam os limites e as expansões de seus modos de fazer saber, porque também são em si a crítica e a virada de suas onto-epistemes. Quero aqui apresentar essas cartas como gestos de utopia, descrever esses gestos como performances da presença dessa utopia nos trópicos. Para tanto, tratarei das cartas de autodemarcação de terras, escritas pelo povo Munduruku do território Daje Kapap Eypi, e publicadas no blog Autodemarcação dos Tapajós, como ponto de partida.


Texto por: Suzane Lima Costa

Confira o texto completo em Gestos de utopia no Sul Global: as cartas indígenas para o mundo


TEKOHA.

 

Em língua guarani, Tekoha é lugar; Tekó, o modo de ser e Bem Viver; Opy, a casa de reza. Combinados no espaço-tempo presente, Tekoha é a terra como lugar do corpo que recusa o não lugar. Mas o que é a terra? A Gaia? Um planeta? Matéria húmus? O que é um corpo? Uma conformação, uma carcaça, um aglomerado? O que é um lugar? O que é um não lugar? Enquanto o devir-humano devorava o mundo, tomando de assalto a vida, os lugares se emaranhavam, as rezas, muitas, perdiam-se em todas as direções; os corpos abriam valas. Estávamos novamente em guerra. Um holocausto, uma geofagia, uma impossibilidade de cura para gráficos ascendentes. Um vírus tomou de assalto o mundo e começou a devolver algumas coisas aos seus lugares. A casa era o lugar do confinamento, da expectativa pela devolução do normal, mas com a proliferação das mortes, a rua foi silenciando transeuntes. Reativamos a composteira, abrimos espaços para plantar a ver se a vida brotaria em respostas. Aílton Krenak (2019) tinha o dedo apontado para a Floresta, território de todas as fugas desde as primeiras invasões. Irônicas, as abóboras cresciam na nesga de terra do apartamento, indiferentes a tudo. O vírus procurava pelos humanos. Havia chegado a hora da humanidade, do humanismo que mata, defeca e fornica em nome de Deus. Pausa para assistir o vídeo sobre hortas caseiras. 

Interrompemos a programação geral para confessar que o medo é fabricado. Conforme tocávamos a terra, e ela respondia fazendo aderências às peles, deixávamos tudo para observar a movência do húmus em nossas mãos, entrega quente, úmida e habitada pelo lugar do encontro. Enquanto o céu caía, espalhávamos sementes pela terra, que respondia com sons de fios tecelados na palavra-lugar. Isso é o sonho do Bem Viver, dizia a terra enquanto engolia sorridente as suas sementes. Quem está aí, Tempo, a comer as sementes que Ivo (LIMA, 2019) não viu? O silencioso sorridente vinha do disco de Paul Simon (2018).

La fora, o céu despencava torrencialmente. Era a queda da Coroa, do capataz e do demônio canibal. O biopoder organizador da mercadoria. Aquele que tem nojo da Floresta, que coloca gado e soja, cana e milho transgênico, amálgama de Belo Monte para tudo queimar sem dó da vida. Aquele que mata e ri muito alto. Terracídio. Faz uma tomada do trator arrasando tudo e corta para o tormento da terra. Dá um close no ódio à mulher que sangra, e fecha nas mudas em germinação saindo de dentro da vagina. Só a imagem, sem legenda. A mãe da ninhada humana é a mesma de todos os mundanos sem lugar. Gente que se recusa ao não lugar.

O próximo passo é a devolução das palavras ao lugar de onde vieram – da terra, agência de outro modo de existir. Então, fizemos um desenho da mística da palavra. Repassamos todas as escalas do conjunto de letras e intervalos que a língua guarda. Havíamos acordado a necessidade de despatologizar a palavra. Desmedicalizar a voz e meditar sobre os usos psicotrópicos dos verbos, enquanto alguém contemplava as contradições que envolviam os desvios que nos atacavam durante o sonho. Educar a audição para ouvir além do óbvio é das coisas mais difíceis, mas, talvez, auscultando a saída do atoleiro em que estamos metidos, ofereça alguma possibilidade de cerzimento do território em que fica a casa de reza para mitigação dos sofrimentos que nos foram impostos com a dissipação das interações sociais que nos expandiam.


Texto de Cristina Araripe Fernandes