O que faz de um gesto uma presença, um aparecimento, um acontecimento político? O que torna um gesto tão singular a ponto de produzir diferentes exercícios de imaginação: outras estampas, verticalidades, outras formas de pensamento e criação, uma utopia. Tem nome esse tipo de gesto? Tem nome para além de dizermos da sua condição de afetar e implicar o corpo de quem o produz, de quem o percebe, de quem de algum modo participa do seu movimento? Agamben fala dos gestos «como meio puro, [...] como exposição de uma medialidade sem fim e comunicação não de algo, mas de uma comunicabilidade, [o que] implica – ou, antes, exige – que tentemos definir de algum modo sua consistência ontológica» (2018: 4). Em Flusser, um gesto «é um movimento no qual se articula uma liberdade» (2014: 16). Gosto da ideia da liberdade, gosto também de pensar na vontade ontológica, no meio sem fim de um gesto, mas, para este ensaio, quero tratar da utopia como nome e paisagem do lugar-não-lugar de um gesto, como seu princípio e condição política.
O Sul Global, se pensado não como lugar, nem como episteme, mas como uma mirada, está cheio desses gestos. Um olhar contrageográfico não necessariamente trata a ideia do Sul Global aqui como metáfora para substituir a ideia de terceiro mundo ou mesmo como modo de rejeitar tudo o que está em produção em sua imaginada oposição – o norte. Não se trata de um retorno dos velhos pares conceituais explicando as excolônias do mundo, isso porque o aumento da desigualdade no mundo escancarou os muitos “Suis” que povoam o Norte e o contrário também. Penso, como Ballestrin, o Sul Global como uma poderosa imagem «para apresentar alternativas de futuro à globalização neoliberal, assim como para revitalizar diferentes lutas por descolonização» (2020: 2).
Há, no entanto, duas considerações necessárias para uma compreensão disso: 1. Apagar as luzes modernas que até então nos disseram dos gestos em suas práticas disciplinares; 2. Mirar para os componentes que movimentam e dão corpo a essa plástica. Mirar no escuro: primeiro gesto de utopia, primeira aproximação contrageográfica do que temos nas paisagens do sul-global. Muitos povos indígenas praticam e nos ensinam essa política da mirada. Nela, o escuro é um sonho político lúcido, capaz de movê-los a enfrentar um paredão fortemente armado de policiais federais com maracás, flechas artesanais, cantos e danças; capaz também de fazê-los escrever cartas ao Brasil e ao mundo, em diferentes línguas, para explicar o que é viver bem, para dizer como se sentem ameaçados e como querem sobreviver e morrer em suas terras ancestrais.
Há algum tempo pesquiso essas cartas: As cartas dos povos indígenas ao Brasil. São mais de setecentas correspondências produzidas entre os anos de 2000-2020. Há cartas do Povo Yanomami à nação brasileira, cartas do Povo Tupinambá ao Brasil e aos seus governantes, cartas dos Xavantes aos presidentes de Portugal e do Brasil, cartas dos Pataxó, Xukuru, Pankararé, Kaingang e de tantos outros povos que escolheram o gênero epistolar como via de acesso ao imaginário do povo brasileiro e do mundo. Há também cartas que colocam o estado brasileiro como interlocutor dos indígenas, mas que não são necessariamente endereçadas ao Brasil: são cartas para o mundo. Nessas cartas, o que se lê é quase sempre uma vontade de dizer aos órgãos internacionais como é viver e, principalmente, quais os modos não naturais de morrer sendo indígenas no Brasil - defender territórios ancestrais, sofrer violência cotidianamente, brigar pela demarcação de terras, ter e não ter aliados durante esse processo. São, desse modo, cartas que expressam a vida de comunidades em manifestos, repúdios e denúncias, mas são também cartas do silêncio, da escrita em fragmentos, de situações e personagens sem contextos prévios nas narrativas, no entanto, impregnadas de múltiplas vozes e rostos.
Estudo esses gestos de escrever, suas composições, seus fins, suas repetições, seus movimentos de pedir e repudiar. Estudo e me pergunto se há um gesto mais utópico do que o de um povo escrever cartas para o Estado, para o mundo? Por que e para quem, afinal, eles escrevem? As cartas indígenas são para mim a própria mirada utópica: traduzem o Sul Global, questionam os limites e as expansões de seus modos de fazer saber, porque também são em si a crítica e a virada de suas onto-epistemes. Quero aqui apresentar essas cartas como gestos de utopia, descrever esses gestos como performances da presença dessa utopia nos trópicos. Para tanto, tratarei das cartas de autodemarcação de terras, escritas pelo povo Munduruku do território Daje Kapap Eypi, e publicadas no blog Autodemarcação dos Tapajós, como ponto de partida.
Texto por: Suzane Lima Costa
Confira o texto completo em Gestos de utopia no Sul Global: as cartas indígenas para o mundo
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