O Brasil destinatário das cartas


                                   
Imagem: Leonardo França.







"Quando decidimos registrar as cartas encaminhadas pelos indígenas ao Brasil, eleger o Brasil como destinatário, e como o outro partícipe da vontade reivindicatória e manifesta do indígena, foi nossa primeira prática seletiva, nossa primeira experimentação e o nosso primeiro encontro para uma definição de uma metodologia para organizar as cartas. Mas o que significa, afinal, o Brasil como interlocutor primeiro dos indígenas? Quem é o Brasil-destinatário das cartas escritas pelos índios? Na primeira seleção das cartas escritas entre os anos 2000 até 2002, recortamos o Brasil-destinatário como o Brasil das comemorações dos 500 anos, que diretamente os indígenas apontavam como o povo ou nação de brasileiros. No segundo momento da nossa análise, o Brasil-destinatário já tinha nome próprio: os dos três últimos presidentes da República e/ou das demais autoridades indicadas por eles para ocupação dos principais cargos públicos no país. Na terceira seleção de cartas, O Brasil não era um destinatário direcionado, mas sim a interlocução, o vocativo, que marcava e convidava os brasileiros para uma conversa particular sobre a situação dos índios hoje. Nesses três modos de explicar quem é o Brasil-destinatário das cartas dos indígenas há também algo muito comum nas cartas por nós catalogadas: o destinatário ao mesmo tempo em que carregava uma vasta representatividade é também, e principalmente, um ausente. Logo, as cartas dos Povos indígenas também cumprem o destino de ser “um escrito que alguém envia a um ausente para lhe fazer ouvir seus pensamentos.” (Grassi, 1998: 2). Grassi lê essa ausência como um ‘espaço entre dois’, espaço que a própria lógica da correspondência ativa na relação remetente-destinatário. Logo, a diferença de uma carta para outros escritos pode ser justamente a ordem do encontro e, conseqüentemente, a presença na ausência que a própria escrita assegura. Sendo assim, é também o destinatário que garante a possibilidade dessa interação, fazendo valer tanto a dialogia do que está ‘entre dois’, quanto os objetivos de quem remete as correspondências. Daí o fato de entender o Brasil-destinatário tanto como representante autorizado a responder às reivindicações dos indígenas, quanto como o espaço simbólico que conclama o leitor qualquer, os brasileiros sensíveis e partícipes da causa indígena. Com essa definição construímos o desenho geral do arquivo, catalogando e analisando em notas de rodapé as correspondências destinadas aos Presidentes da República, o que também fizemos com as cartas que não possuíam destinatário nominal, mas que evocavam o povo brasileiro como seu interlocutor direto. Assim no Brasil-destinatário dos índios e nos modos de construir essa interlocução, o que se evidencia é que o destino dessas cartas terá sempre no coletivo a sua razão dialógica. ISSN 1851-3751 (en línea) / ISSN 0327-5752 (impresa) Memoria Americana. Cuadernos de Etnohistoria 26.1 (2018) 100 As cartas dos Povos indígenas ao Brasil: a construção do arquivo 2000-2015 [94-104] 101 Todavia, as cartas dos indígenas não dizem somente de um ‘espaço entre dois’, como definiu Grassi, uma vez que essa idéia de correspondência não se cumpre aos modos do que o gênero exige. Isso porque, além de cartas que embaralham as relações públicas e privadas, estamos diante de cartas-manifestos, cartasdenúncias, cartas-documentais, tornadas públicas pelos próprios remetentes. Dessa forma, as cartas dos indígenas não são somente um gênero específico de escrita, mas uma diversidade de textualidades que têm mais na vontade dialógica, do que na própria realização dessa interlocução, a singularidade do tipo de escrita que comumente chamamos de carta. Relembrando Foucault (2004) e o seu texto “A escrita de si”, o que está em jogo quando se escreve cartas são os modos de dizer do ‘eu/outro’ no caminho do próprio cuidado. Assim, o dialogismo na escrita de uma carta se traduz no descentramento que o remetente constrói quando escreve sobre ‘si’ (Costa, 2013), mesmo que a resposta do destinatário tenha se perdido no tempo, tenha sido extraviada ou, simplesmente, não exista." Leia o artigo completo em: https://jornalistaslivres.org/as-cartas-dos-povos-indigenas-ao-brasil/


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