"Quando decidimos registrar as cartas encaminhadas pelos indígenas ao
Brasil, eleger o Brasil como destinatário, e como o outro partícipe da vontade
reivindicatória e manifesta do indígena, foi nossa primeira prática seletiva,
nossa primeira experimentação e o nosso primeiro encontro para uma definição
de uma metodologia para organizar as cartas. Mas o que significa, afinal, o
Brasil como interlocutor primeiro dos indígenas? Quem é o Brasil-destinatário
das cartas escritas pelos índios?
Na primeira seleção das cartas escritas entre os anos 2000 até 2002, recortamos
o Brasil-destinatário como o Brasil das comemorações dos 500 anos, que
diretamente os indígenas apontavam como o povo ou nação de brasileiros. No
segundo momento da nossa análise, o Brasil-destinatário já tinha nome próprio:
os dos três últimos presidentes da República e/ou das demais autoridades
indicadas por eles para ocupação dos principais cargos públicos no país. Na
terceira seleção de cartas, O Brasil não era um destinatário direcionado, mas
sim a interlocução, o vocativo, que marcava e convidava os brasileiros para
uma conversa particular sobre a situação dos índios hoje.
Nesses três modos de explicar quem é o Brasil-destinatário das cartas dos
indígenas há também algo muito comum nas cartas por nós catalogadas: o
destinatário ao mesmo tempo em que carregava uma vasta representatividade
é também, e principalmente, um ausente. Logo, as cartas dos Povos indígenas
também cumprem o destino de ser “um escrito que alguém envia a um ausente
para lhe fazer ouvir seus pensamentos.” (Grassi, 1998: 2).
Grassi lê essa ausência como um ‘espaço entre dois’, espaço que a própria
lógica da correspondência ativa na relação remetente-destinatário. Logo, a
diferença de uma carta para outros escritos pode ser justamente a ordem do
encontro e, conseqüentemente, a presença na ausência que a própria escrita
assegura. Sendo assim, é também o destinatário que garante a possibilidade
dessa interação, fazendo valer tanto a dialogia do que está ‘entre dois’, quanto
os objetivos de quem remete as correspondências.
Daí o fato de entender o Brasil-destinatário tanto como representante
autorizado a responder às reivindicações dos indígenas, quanto como o
espaço simbólico que conclama o leitor qualquer, os brasileiros sensíveis e
partícipes da causa indígena. Com essa definição construímos o desenho geral
do arquivo, catalogando e analisando em notas de rodapé as correspondências
destinadas aos Presidentes da República, o que também fizemos com as cartas
que não possuíam destinatário nominal, mas que evocavam o povo brasileiro
como seu interlocutor direto. Assim no Brasil-destinatário dos índios e nos
modos de construir essa interlocução, o que se evidencia é que o destino dessas
cartas terá sempre no coletivo a sua razão dialógica.
ISSN 1851-3751 (en línea) / ISSN 0327-5752 (impresa)
Memoria Americana. Cuadernos de Etnohistoria
26.1 (2018)
100 As cartas dos Povos indígenas ao Brasil: a construção do arquivo 2000-2015 [94-104] 101
Todavia, as cartas dos indígenas não dizem somente de um ‘espaço entre dois’,
como definiu Grassi, uma vez que essa idéia de correspondência não se cumpre
aos modos do que o gênero exige. Isso porque, além de cartas que embaralham
as relações públicas e privadas, estamos diante de cartas-manifestos, cartasdenúncias, cartas-documentais, tornadas públicas pelos próprios remetentes.
Dessa forma, as cartas dos indígenas não são somente um gênero específico
de escrita, mas uma diversidade de textualidades que têm mais na vontade
dialógica, do que na própria realização dessa interlocução, a singularidade do
tipo de escrita que comumente chamamos de carta.
Relembrando Foucault (2004) e o seu texto “A escrita de si”, o que está em jogo
quando se escreve cartas são os modos de dizer do ‘eu/outro’ no caminho do
próprio cuidado. Assim, o dialogismo na escrita de uma carta se traduz no
descentramento que o remetente constrói quando escreve sobre ‘si’ (Costa,
2013), mesmo que a resposta do destinatário tenha se perdido no tempo, tenha
sido extraviada ou, simplesmente, não exista." Leia o artigo completo em: https://jornalistaslivres.org/as-cartas-dos-povos-indigenas-ao-brasil/
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