Carta de Rafael Xucuru-Kariri para Jaider Esbell.

02.11.2021 

Hoje é dia dos mortos e acabo de receber a notícia sobre a sua passagem. Quando alguém me diz que um parente se foi, minha mente logo é assombrada pelas imagens de assassinato, covid, suicídio ou alguma doença evitável se vivêssemos com um mínimo de dignidade nessas paragens. Me assombra mais ainda quando o interlocutor sempre confirma algum desses quatro presságios. Parece que a morte é sempre política entre nós, nunca natural. Morremos de luta, de abandono ou de tristeza. Que pena saber da sua passagem. Um artista tão potente e com tanto a dizer ao mundo. Escrevemos e estudamos sua obra há um tempo já. E sabíamos que em breve o mundo concordaria com a genealidade que víamos no seu trabalho. Isso já estava acontecendo nas bienais, nos prêmios e nos tantos olhares de espanto, ódio, beleza e alegria que suas obras causavam. Você, Denilson Baniwa, Arissana Pataxó, Daira Tucano e tantos outros e outras estavam encantando o mundo, mostrando o que dizemos, como vc falava, há mais de 500 anos: estamos aqui e não vamos a lugar algum. Essa prática que provoca tanta violência do Presidente e seus capangas, das instituições e da sociedade democrática que, ironicamente, busca eliminar a memória étnica. Merecem mesmo esse nome? Como você disse, só teremos democracia quando todas as terras indígenas forem demarcadas. Vc se tornou um encantado, que na tradição Xucuru-Kariri, orienta a luta e os lutadores pela existência indígena. Vc nos enche de coragem, beleza e estímulo. Eu sei disso tudo, e em pouco tempo essa será a imagem que terei de ti, mas hoje só consigo sentir tristeza. Sabe aquela estatística que diz que só 50% de nós conseguirá chegar aos 50 anos? Hoje ela tem cara, tem o rosto de Jaider Esbell, tem a potência e toda a tristeza que sentimos por alguém que morre de luta, que enfrentou tudo e todos pela causa indígena. Boa passagem meu parente. Seu encantamento já está em nós.

Rafael Xucuru-Kariri

A PL 490 e o Acampamento Luta pela Vida

O mês de agosto está sendo palco de uma discussão importantíssima para a estrutura sociopolítica dos povos indígenas e do Brasil: o marco temporal e a movimentação sociopolítica em torno da questão. A problemática que precede o tema discutido pode, dentre outras formas, ser explicada sucintamente através de uma equação, onde vê-se cerca de 97 mil proprietários rurais com posse de, aproximadamente, 21,5% do território brasileiro em contraste contra 572 mil indígenas ocupando pouco mais da metade dessa área, cerca 13% do território.


A discrepância exposta pelos números é resultado de um processo de supressão de direitos que os povos indígenas sofrem desde quando o empreendimento colonizatório desembarcou do Atlântico. Desde então, suas terras foram usurpadas, seus direitos suprimidos e suas vidas ameaçadas e violentadas.


O marco temporal, nada mais é do que uma afirmação dessa maculação simbólica e material que atravessa os povos indígenas. O que atualmente está em julgamento dentro do Supremo Tribunal Federal (STF) desde quinta-feira, 26 de agosto, é a proposta de congelamento do processo de demarcação de terras indígenas, que defende que apenas as terras que já estavam sob o domínio de indígenas, em 5 de outubro de 1988 podem ser reivindicadas.


No entanto, isso fere a constituição, haja vista que vai de contra ao artigo 231,o qual prega a salvaguarda dos direitos indígenas, incluindo a posse de seus territórios originários.


Mesmo sendo uma proposta que foge do acordo constitucional, o marco temporal segue com defesas de aprovação devido aos interesses dos grandes latifundiários e produtores rurais brasileiros, que visam o lucro acima de tudo, até mesmo das vidas indígenas. Vidas essas que são tidas como um empecilho para a noção violenta e destrutiva de progresso imposta pelo capitalismo.

É muito importante salientar que essa aprovação parte não só dos ruralistas, mas também de parlamentares. O que é extremamente preocupante, haja vista que o poder de decidir diversos caminhos que o país irá seguir está nas mãos dessas pessoas.

O impasse é claro, e o epicentro do embate entre indígenas e ruralistas se materializou na capital federal, Brasília. Sendo assim, desde a semana passada, imagens de protestos das mais diversas naturezas foram registradas e noticiadas em veículos midiáticos.

À frente dessas movimentações estão diversas organizações e lideranças indígenas, que estão lutando bravamente e com todas as armas possíveis contra a aprovação do marco e em favor da manutenção de suas terras, memórias, vidas e existências.

Para encontrar campanhas de arrecadação e fazer sua doação pela permanência dos povos indígenas no Acampamento Luta Pela Vida, acesse o link aqui.

Curso de extensão: Povos Indígenas no Brasil

Juntamente ao retorno do semestre, o projeto As Cartas Indígenas ao Brasil anuncia o curso de extensão: Povos Indígenas: Entre cartas e fotografias.

Com carga horária de 68h (40h atividades síncronas / 28h atividades assíncronas) e certificado de participação, o curso tem como público-alvo: artistas visuais, professores da educação básica e pesquisadores interessados nas questões indígenas

Você pode se inscrever clicando aqui. 

As vagas são limitadas e as inscrições vão até o dia 20 de agosto! 

Resumo:

Neste curso faremos uma análise da presença dos povos indígenas no Brasil, a partir da leitura de suas cartas e dos modos como suas imagens foram reproduzidas em fotografias e outros suportes visuais. Trata-se de um curso direcionado para a comunidade não-indígena ampliar seus olhares sobre os modos de escrever dos indígenas, bem como para analisar criticamente, através da leitura de suas imagens, os modos como os indígenas foram vistos e iconografados na história literária e política do Brasil. O curso será ministrado em duas etapas e contará com a presença de pesquisadores especialistas na área de documentação histórica e imagética dos povos indígenas. Durante as aulas, serão apresentadas as cartas produzidas por indígenas em diferentes tempos da história do Brasil, para cada tempo histórico das cartas, analisaremos também a produção imagética do período até chegarmos às práticas contemporâneas de fotografação.

Público-Alvo: Artistas visuais, professores da educação básica e pesquisadores interessados nas questões indígenas


Link do formulário: https://forms.gle/hX5NfxmUFvMiD2y99


Cartas para não morrer.

    


     João Natalício dos Santos Xukuru-Kariri foi assassinado a facadas na madrugada de 11 de novembro de 2016¹ na porta de casa. Seu João, liderança indígena, morreu no quintal da sua residência na aldeia Fazenda Canto, TI Xucuru-Kariri, fontes indicam que a liderança foi assassinada por conhecidos que o atraíram e desferiram golpes até sua morte.

Assim como seu João, muitos indígenas são assassinados no Brasil a todo momento, a única diferença está na proveniência dos golpes que dizimaram povos inteiros. O Estado ainda se mostra como máquina mais letal no etnocídio de povos nativos, quando a omissão se é somada à invasão e exploração de terras agrava o cenário predominante de violência.

As violências sutis são somadas ao longo dos séculos de exploração e indeferimento dos direitos dos povos indígenas. Os direitos mais básicos como moradia, saúde e educação são exigências recorrentes nas cartas escritas pelos povos indígenas e endereçadas ao Brasil, Brasil esse cada vez mais distante da performance de destinatário.

Só no primeiro ano do Governo Bolsonaro foi registrado o maior número de lideranças indígenas assassinadas comparadas aos 11 anos anteriores segundo o relatório emitido pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI). As invasões de terras e esquemas de grilagem ganharam destaque desde o cumprimento da promessa de governo do presidente em que afirmou não assinar mais nenhuma nova demarcação de Terras Indígenas, com isso os conflitos frequentes aumentaram a lista de indígenas assassinados, como os 40 indígenas Guajajara, incluindo Paulino Guajajara, mortos em conflitos com madeireiros entre os anos de 2000 e 2019.

Além da luta por direitos e contra invasores, os povos indígenas do Brasil vêm sofrendo a defasagem na educação e saúde, esse último agravado pela pandemia e que envolve uma série de fatores e consequências que agridem de diferentes formas o ser indígena. Recentemente temos tido contato com lutas que parecem inéditas para alguns grupos, a necessidade de ação e união para o enfrentamento de verdadeiros atentados contra a vida, atentados esses que os povos indígenas vivenciam há séculos e que são marcados por nomes que muitas vezes passam por desconhecidos - isso quando são noticiados. Nomes como Nísio Gomes, Paulino Guajajara, Kunumi Poty Verá, Simeão Vilhalva, João Natalício e tantos outros guerreiros e guerreiras indígenas serão sempre recordados em cartas para não morrer.


¹://cimi.org.br/2016/10/38918/ 


Leia mais em:

https://apublica.org/2020/04/sob-governo-bolsonaro-conflitos-no-campo-aumentam-e-assassinatos-de-indigenas-batem-recorde/ 


https://www.brasildefato.com.br/2020/09/30/casos-de-violencia-contra-indigenas-aumentam-150-no-primeiro-ano-de-bolsonaro 


Gamela: Carta de solidariedade dos Gamela para os Guarani e Kaiowá de Ñanderú Marangatú



 

                                                       
  

Maranhão, 31 de agosto de 2015


Povo Gamela manifesta solidariedade aos Guarani e Kaiowá de Ñanderú Marangatú


CARTA AOS PARENTES GUARANY E KAIOWÁ

Parentes, nós, Povo Gamela, do estado do Maranhão, sentimos profundamente a dor dos parentes Guarani e Kaiowá do TEKOHA ÑANDERU MARANGATU –ANTONIO JOÃO, Mato Grosso do Sul, por causa dos ataques de pistoleiros/fazendeiros que assassinaram a jovem liderança SIMIÃO VILHALVA. Estamos unidos espiritualmente a vocês que estão lutando pelo sagrado direito de retorno ao seu Tekoha, diante da omissão criminosa do Estado Brasileiro. A determinação e coragem de vocês, parentes, fortalecem o nosso povo para também retomarmos nossa terra que foi grilada e roubada. Parentes, estamos unidos a vocês na determinação de retomarmos nossas terras que foram roubadas. Sintam no abraço do vento aos seus corpos o nosso abraço. Que a força dos nossos Encantados e Ancestrais e a Sabedoria dos nossos Sábios e Sábias sustentem nossos pés e nossas mãos para a luta em defesa da nossa.

Mãe Terra.

Povo Gamela

Tempo dos Ipês


Fonte: https://cimi.org.br/2015/08/37598/

CIR: Carta de repúdio ao Massacre de Caarapó e assassinato de Clodiodi de Souza (Kunumi Poty Verá)



 Boa Vista, 15 de junho de 2016.

 

O Conselho Indígena de Roraima (CIR), diante do massacre cometido contra os povos indígenas Guarani e Kaiowá, da Terra Indígena Dourados – Amambai Peguá, município de Caarapó do estado de Mato Grosso do Sul, ocorrido nesta terça-feira, 14, tirando a vida de mais uma liderança indígena, Clodiodi Aquileu Rodrigues de Souza, 26 anos, e deixando outros seis gravemente feridos, entre eles, uma criança, veemente repudia o massacre e ao mesmo tempo, manifesta ao Estado e a sociedade brasileira um questionamento. Até quando esse massacre contra nós povos indígenas do Brasil, contra os povos indígenas de Mato Grosso do Sul?

De longe acompanhamos tamanho massacre, violência e ameaça cometido contra nossos parentes indígenas de Mato Grosso do Sul, mas podemos sentir na pele a dor da violência, da morte, a agonia da perseguição, sobretudo, da falta de sensibilidade e respeito humano que nos afetam cotidianamente.  

O cenário de massacre provocado a mando dos fazendeiros, latifundiários, do agronegócio desse país, culmina, com uma série de ataques aos nossos direitos originários, principalmente, os nossos direitos a terra, fonte da nossa vida. Entre os ataques, temos como principal ameaça a Proposta de Emenda Constitucional 215 (PEC 215) e outros projetos como, construção de hidrelétricas, mineradoras, rodovias, que visam avançar sobre nossos territórios indígenas.

Mas a luta pela defesa dos territórios indígenas tem sido uma luta contínua e pouco a pouco vamos reconquistamos nossas terras que, historicamente, foram invadidas, roubadas e hoje, serve como máquina de destruição nas mãos dos grandes fazendeiros, latifundiários que cada vez mais insistem em avançam sobre os nossos territórios sagrados.

Diante desse cenário de massacre à nós povos indígenas do Brasil, em especial, aos povos indígenas de Mato Grosso do Sul, o CIR, em nome das lideranças indígenas das diversas regiões, somando uma população de aproximadamente 60 mil indígenas, de 470 comunidades indígenas, dessas comunidades, atuando em 235, pertencentes aos povos indígenas Macuxi, Wapichana, Ingaricó, Patamona, Sapará, Taurenpag, Wai-Wai, Yanomami e Yekuana, também presta solidariedade aos familiares de Clodiodi Aquileu Rodrigues de Souza, e na certeza de que a luta indígena no Brasil é uma luta coletiva, manifesta sentimentos de esperança, força e resistência aos parentes indígenas Guarani e Kaiowá e demais povos do Brasil.

Juntos pela resistência e luta indígena no Brasil.

Conselho Indígena de Roraima


APIB: Nota de repúdio e pesar pelo assassinato do guardião Paulo Paulino Guajajara



Maranhão, 2 de novembro de 2019 


– É com profunda tristeza e revolta, que nós, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), vimos a público denunciar e prestar solidariedade ao Povo Guajajara pelo assassinato do guardião Paulo Paulino Guajajara após o grupo dos agentes florestais indígenas “Guardiões da Floresta” ter sido emboscado por madeireiros dentro de seu próprio território. O líder indígena guardião Laércio Guajajara também foi ferido, ele está internado e seu quadro é estável.


O crime ocorreu ontem no interior da Terra Indígena Araribóia, região de Bom Jesus das Selvas-MA, entre as aldeias Lagoa Comprida e Jenipapo. Houve intenso confronto. O indígena Paulo Paulino Guajajara, conhecido como “Lobo mau”, foi brutalmente assassinado com um tiro no rosto. Há informações de que um madeireiro envolvido no crime também pode ter morrido no confronto, seu corpo está desaparecido.


O Governo Bolsonaro tem sangue indígena em suas mãos, o aumento da violência nos territórios indígenas é reflexo direto de seu discurso de ódio e medidas contra os povos indígenas do Brasil. Nossas terras estão sendo invadidas, nossas lideranças assassinadas, atacadas e criminalizadas e o Estado Brasileiro está deixando os povos abandonados a todo tipo de sorte com o desmonte em curso das políticas ambientais e indigenistas.


Neste momento, oito líderes indígenas da APIB estão em uma intensa jornada pela Europa para denunciar a grave crise de direitos humanos que os povos indígenas do Brasil enfrentam sob o presidente Jair Bolsonaro. Intitulada “Sangue Indígena: Nenhuma Gota a Mais”, a campanha pede às autoridades e aos líderes empresariais da Europa que respondam à crescente violência e devastação ambiental na Amazônia e em todo o país.


Um relatório recente do Conselho Missionário Indígena do Brasil (CIMI) mostrou um aumento dramático da violência contra comunidades nativas e invasões de territórios indígenas. Durante os primeiros nove meses de posse de Bolsonaro, houve 160 casos relatados de invasões de terras, o dobro dos números registrados no ano passado.


Sonia Guajajara, coordenadora executiva da APIB e liderança do Povo Guajajara, declarou que o Território Indígena Araribóia está em luto e que já faz tempo que eles vêm denunciando a situação de ausência do poder público na proteção dos territórios indígenas, assim como a invasão do território Araribóia para a exploração ilegal de madeira e a luta dos guardiões para protegê-lo. “Não queremos mais ser estatística, queremos providências do Poder Público, dos órgãos que estão cada vez mais sucateados exatamente para não fazerem a proteção dos povos que estão pagando com a própria vida por fazer o trabalho que é responsabilidade do Estado. Exigimos justiça urgente!”.


Nesta segunda-feira, dia 4, está agendada audiência pública em Imperatriz (MA) para discutir o arrendamento dos Territórios Indígenas e o entreguismo para o agronegócio. Não aceitaremos a legalização da destruição de nossos territórios.


Sabemos que os povos indígenas em todo mundo são responsáveis pela preservação de 80% da biodiversidade, assim como para o combate à crise climática que é um dos maiores problemas enfrentados pela humanidade neste século XXI. Onde há indígenas, há floresta em pé. Por isso, um ataque aos nossos povos, representa um ataque a todas às sociedades e ao futuro das próximas gerações.


É preciso dar um basta à escalada dessa política genocida contra os nossos povos indígenas do Brasil. É por isso que estamos com a nossa campanha pelos países da Europa, para alertar ao mundo o que está acontecendo no Brasil e pedir apoio para que nenhuma gota a mais de sangue indígena seja derramada.


Sangue Indígena: Nenhuma Gota Mais!


Articulação dos Povos Indígenas do Brasil


Foto: Guardiões Guajajara estão protestando pela proteção de sua terra. © Guardiões Guajajara


Fonte: https://racismoambiental.net.br/2019/11/02/apib-nota-de-repudio-e-pesar-pelo-assassinato-do-guardiao-paulo-paulino-guajajara/

Leitura da carta do Conselho Aty Guasu Kaiowá Guarani para Luiz Inácio Lula da Silva

 


O Conselho Aty Guasu Kaiowá Guarani, organização responsável por assembleias e manifestações políticas e sociais do povo, é ativo na produção de cartas e notas sobre assuntos que estão relacionados à comunidade indígena e ao povo Guarani Kaiowá. Na carta escrita em 24 de agosto de 2010, juntamente com a Comissão de Professores Indígenas Kaiowá Guarani, o Conselho se manifesta acerca da demarcação de terras indígenas, ou ausência dela, promessa feita pelo presidente dirigente da época ao qual a carta é endereçada.

Em 2010, Luiz Inácio Lula da Silva cumpria o último ano do seu segundo mandato como presidente da república. Durante os oito anos de mandato, o ex-presidente Lula homologou 89 TIs, sendo apenas 22 delas fora da Amazônia, ainda que em promessas tenha afirmado priorizar a homologação das terras ocupadas pelos remetentes da carta: “Várias vezes ouvimos o senhor falar e nos prometer pessoalmente que iria resolver o problema da demarcação de nossas terras Kaiowá Guarani”, motivo pelo qual o Conselho Aty Guasu redige a carta é a ausência dessas ações no território onde residem.

Os Kaiowá habitam a região sul do Mato Grosso do Sul, com aldeias distribuídas às margens dos rios Apa, Dourados, Ivinhema, Amambai e a margem esquerda do Rio Iguatemi, o território ainda faz fronteira com os Guarani Ñandeva, Guarani Mbya e, ao norte, com os Terena. A carta do Conselho Aty Guasu Kaiowá Guarani cita ainda uma visita de Lula ao Mato Grosso do Sul: “senhor presidente Lula, o senhor vem aqui na região do nosso território Kaiowá Guarani, em Dourados, sem ter, em quase 8 anos de governo praticamente nada feito pelas nossas terras” e a questão da Funai ter assinado o Termo de Ajustamento de Conduta junto ao Ministério Público colocando a situação das terras indígenas Kaiowá como prioridade.

O TAC regulariza o desenvolvimento de atividades agrícolas feitas exclusivamente por indígenas em seu território, impedindo que agricultores e empresas se apropriem dessas regiões. O termo tem duração de dois anos e é um dos passos para o longo processo de demarcação de territórios indígenas, e segundo a carta esse tempo foi excedido: “O tempo já expirou e nada das nossas terras sequer serem identificadas”.

Outro ponto importante da carta é a violência sofrida e retratada pela comunidade, através da denúncia do assassinato de dois professores Guarani Ñandewa na terra indígena Ypo’i. Os Kaiowá assinalam como a questão da terra afeta o povo: “Nosso povo continua sendo morto que nem animal e muitos de nossos jovens se suicidam pela falta de esperança e de terra. Sofremos demais com tanta violência em e contra nossas comunidades”, situação que só se modificará através de projetos de demarcação e requalificação das terras.

O Conselho Aty Guasu Kaiowá Guarani juntamente à Comissão de Professores Indígenas Kaiowá Guarani finaliza a carta ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva exigindo a demarcação urgente do território além do respeito aos direitos do povo.


Fontes:

www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/o-que-o-governo-dilma-fez-e-nao-fez-para-garantir-o-direito-a-terra-e-areas-para-conservacao

https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Guarani_Kaiowá



Texto por: Érica Damasceno

Do Conselho da Aty Guasu Kaiowá Guarani para Luiz Inácio Lula da Silva

Dourados, 24 agosto de 2010.

Senhor Presidente Lula,

Várias vezes ouvimos o senhor falar e nos prometer pessoalmente que iria resolver o problema da demarcação de nossas terras Kaiowá Guarani. Não entendemos porque isso até hoje não aconteceu. Ouvimos até o senhor pedir isso ao governador. Porém, como ele se manifestou várias vezes contra o reconhecimento de nossas terras, tínhamos a certeza de que ele não só nada faria, como se empenhou em impedir a demarcação.

Agora, senhor presidente Lula, o senhor vem aqui na região do nosso território Kaiowá Guarani, em Dourados, sem ter, em quase 8 anos de governo praticamente nada feito pelas nossas terras. Ou melhor, fizeram muitas promessas, a Funai colocou a nossa situação como prioridade, assinou juntamente com o Ministério Público um Termo de Ajustamento de Conduta. O tempo já expirou e nada das nossas terras sequer serem identificadas.

Senhor Presidente, por favor, não prometa nada, mande apenas demarcar nossas terras. O resto sabemos dos nossos direitos e vamos batalhar por eles. Já esperamos demais e toda nossa enorme paciência acabou. Só esperamos não precisar ir pelo mundo afora, na ONU e nos tribunais internacionais denunciar um governo em quem tanto esperamos. Temos a certeza que o senhor que quer entrar para a história como um grande presidente desse país e para a humanidade, não queira entrar também como massacrador do nosso povo. Caso não demarcar as terras, infelizmente é isso que continuará a acontecer conosco. O senhor já deve ter ouvido falar do recente assassinato dos nossos dois professores, Jenivaldo e Rolindo, na terra indígena Ypo’i, município de Paranhos. Seus familiares vieram aqui exigir justiça e garantia de vida e seus direitos à sua terra tradicional à qual voltaram recentemente. Querem encontrar o corpo de Rolindo e ali enterrar Jenivaldo.

Finalmente, senhor presidente Lula, Não deixe nosso povo Kaiowá Guarani sofrendo tanto. Nosso povo continua sendo morto que nem animal e muitos de nossos jovens se suicidam pela falta de esperança e de terra. Sofremos demais com tanta violência em e contra nossas comunidades. Isso só vai começar a mudar com a demarcação de nossas terras, juntamente com um plano de recuperação ambiental e produção de alimentos.

Não fazemos pedidos, exigimos direitos. Demarcação de nossas terras com urgência para que nosso povo volte a viver em paz, com felicidade e dignidade.

Conselho da Aty Guasu Kaiowá Guarani e Comissão de Professores Indígenas Kaiowá Guarani


Fonte: www.ecodebate.com.br/2010/08/27/carta-kaiowa-guarani-ao-presidente-lula/

De Guarani Kaiowá para Dilma Rousseff

 

Dourados, 31 janeiro de 2011

Que bom que a senhora assumiu a presidência do Brasil. É a primeira mãe que assume essa responsabilidade e poder. Mas nós Guarani Kaiowá queremos lembrar que para nós a primeira mãe é a mãe terra, da qual fazemos parte e que nos sustentou há milhares de anos. Presidenta Dilma, roubaram nossa mãe. A maltrataram, sangraram suas veias, rasgaram sua pele, quebraram seus ossos… rios, peixes, arvores, animais e aves… Tudo foi sacrificado em nome do que chamam de progresso.  Para nós isso é destruição, é matança, é crueldade. Sem nossa mãe terra sagrada, nós também estamos morrendo aos poucos. Por isso estamos fazendo esse apelo no começo de seu governo. Devolvam  nossas condições de vida que são nossos tekohá, nossos terras tradicionais. Não estamos pedindo nada demais, apenas os nossos direitos que estão nas leis do Brasil e internacionais.

No final do ano passado nossa organização Aty Guasu recebeu um premio. Um premio de reconhecimento de nossa luta.  Agora, estamos repassando esse premio para as comunidades do nosso povo.  Esperamos que não seja um premio de consolação,  com o sabor amargo de uma cesta básica, sem a qual hoje não conseguimos sobreviver. O Premio de Direitos Humanos para nós significa uma força para continuarmos nossa luta, especialmente na reconquista de nossas terras. Vamos carregar a estatueta para todas as comunidades, para os acampamentos, para os confinamentos, para os refúgios, para as retomadas… Vamos fazer dela o símbolo de nossa luta e de nossos direitos.

Presidente Dilma,  a questão das nossas terras já era para ter sido resolvido há décadas. Mas todos os governos lavaram as mãos e foram deixando a situação se agravar. Por último o ex-presidente Lula, prometeu, se comprometeu, mas não resolveu. Reconheceu que ficou com essa dívida para com nosso povo Guarani Kaiowá e passou a solução para suas mãos. E nós não podemos mais esperar. Não nos deixe sofrer e ficar chorando nossos mortos quase todos os dias. Não deixe que nossos filhos continuem enchendo as cadeias ou se suicidem por falta de esperança de futuro.  Precisamos nossas terras para começar a resolver a situação que é tão grave que a procuradora Deborah Duprat, considerou que Dourados talvez seja a situação mais grave de uma comunidade indígena no mundo.

Sem as nossas terras sagradas estamos condenados. Sem nossos tekohá, a violência vai aumentar, vamos ficar ainda mais dependentes e fracos. Será que a senhora como mãe e presidente quer que nosso povo vai morrendo à míngua?. Acreditamos que não. Por isso, lhe dirigimos esse apelo exigindo nosso direito.

Conselho da Aty Guasu Kaiowá Guarani

Fonte: https://cimi.org.br/2011/02/31520/ 

Leitura da carta dos Guarani Kaiowá para Dilma Rousseff

 

“Presidenta Dilma, roubaram nossa mãe. A maltrataram, sangraram suas veias, rasgaram sua pele, quebraram seus ossos… rios, peixes, árvores, animais e aves… Tudo foi sacrificado em nome do que chamam de progresso.  Para nós isso é destruição, é matança, é crueldade. Sem nossa mãe terra sagrada, nós também estamos morrendo aos poucos. Por isso estamos fazendo esse apelo no começo de seu governo.”


Será que desta vez uma mãe protegerá outra? 


No dia primeiro de janeiro de 2011, Dilma Rousseff tomou posse da presidência da república e se tornou a 36º pessoa a ocupar o mais alto cargo da política brasileira, a presidência.

Ela foi a primeira mulher nesta posição. E esse fato, na época, marcou um tensionamento nas estruturas da política brasileira. 

Como em qualquer processo de escolha eleitoral, o resultado agradou a uns e, em contrapartida, desagradou a outros.


Mas aqui o que nos interessa, em primeira instância, é: como o governo da primeira presidenta do Brasil respondeu às agendas dos povos originários do Brasil?

   

Para tanto, neste texto falar-se-á um pouco acerca da situação vivenciada, em uma instância geral, pelos povos indígenas durante o governo de Dilma Rousseff (2011-2016). Isso será feito através de uma leitura crítico-analítica da carta do povo Guarani Kaiowá, datada no dia 31 de janeiro de 2011 e destinada ao então presidente do Brasil.


Logo nas primeiras linhas da carta, que foi escrita ainda no mês da posse de Rousseff, é possível notar uma certa “felicidade” por parte dos Kaiowá em saber que ela havia sido escolhida, através do voto popular, para gerir a nação. Isso fica claro no trecho a seguir: 


“Que bom que a senhora assumiu a presidência do Brasil. É a primeira mãe que assume essa responsabilidade e poder.”


Mas no decorrer da epístola, ocorre uma mudança no conteúdo da mensagem e o que antes indicava um certo contentamento começa a apontar um pedido, que se transforma em súplica com o desenrolar das linhas. 


Essa súplica solicita à nova presidente que dê maior atenção à agenda indígena durante o seu mandato, pois o histórico de atitude dos presidentes anteriores a ela não foi efetiva no que diz respeito à pauta. Essas negligências corroboraram para  uma série de dores amargadas pelos povos indígenas. Negligências essas que ferem suas vivências e sobrevivências em diversas instâncias. Mas na carta, o ponto mais destacado pelos Guarani Kaiowá são os ataques a um dos seus bens mais preciosos, a terra, citada na carta como “mãe”.


A visão da terra para o indígena segue uma lógica diferente da visão colonial, que promove um consumismo desenfreado, doentio e nocivo encoberto pela ideia de progresso. A terra que o indígena pisa faz parte de quem ele é e do que o constitui espiritual e cosmologicamente. 

Portanto, essa carta é , antes de tudo, um pedido desesperado por socorro e sobrevivência. Quando os Kaiowa a escrevem, projetam também as vozes de todos os povos indígenas, pedindo à presidenta Dilma, pois tem a esperança de uma mudança de cenário, eles acreditam que uma mãe, a presidente, irá proteger a outra, a terra, e assim a vida de seus filhos serão protegidas, garantidas e respeitadas. 


É de extrema importância destacar que pedidos como esses não são inéditos, e nem cessarão com esta carta. A população indígena ainda há de pedir muito à presidência e a outras instâncias de poder. Afinal, a posição de pedinte foi imposta a estes povos devido a colonização e seus rastros.

 

Contudo, devemos levantar o seguinte questionamento: A solicitação da carta foi atendida ou ao menos ouvida?

 

Como um caminho de resposta é possível seguir os dados do programa de monitoramento de áreas protegidas do Instituto Socioambiental. A estatística deste estudo aponta que o governo Dilma não fez questão de inclinar seus ouvidos a esse pedido. E revela, também, que durante seu mandato cerca de apenas 21 T.Is (terras indígenas) foram homologadas, o que não é satisfatório.

Mas, em contrapartida, o desmatamento criminoso em territórios pertencentes aos indígenas aumentou juntamente com os empreendimentos não indígenas em parcela territorial de domínio indígena.


Essas informações, juntamente com a leitura da carta, montam não só uma resposta à epístola, mas também nos faz refletir sobre até quando os presidentes, as instâncias de poder e a sociedade brasileira irão tapar os ouvidos e virar as costas para os povos indígenas. 


-Para ler a carta na íntegra acesse: https://cimi.org.br/2011/02/31520/

-Para saber mais sobre o assunto acesse:

Texto de: João Vitor Carvalho


Leitura da carta da APIB para Michel Temer

Foto: Takukam Takuikam

Diversas são as motivações dos povos indígenas para escrever cartas endereçadas ao Brasil. Algumas das correspondências são convites para eventos e manifestações, outras pedem consciência dos não indígenas acerca da violência sofrida pelos povos indígenas, e muitas se tratam de notas de repúdio, onde, no caso da carta em questão, uma associação denuncia práticas tomadas pelo governo que sucateiam direitos indígenas já conquistados, algumas das vezes de maneira inconstitucional. Sendo assim, nesse texto, pretendo fazer uma leitura da carta escrita pela APIB, com o fito de ressaltar e proporcionar contexto acerca de algumas decisões do então presidente em exercício Michel Temer que revelam esse sucateamento.

O remetente da carta escrita a Michel Temer é a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, associação formada por diversas organizações indígenas regionais, e que compõe a extensa história de luta e resistência dos povos indígenas no território brasileiro. As demandas foram discutidas no XIII Acampamento Terra Livre – Mobilização Nacional Indígena, que ocorreu dos dias 10 a 13 de maio de 2016, período em que Temer fez algumas declarações com relação aos seus planos de governo.

Na carta publicada pela APIB no dia 1 de maio de 2016, a Articulação demonstra repúdio por falas e ações tomadas por Michel Temer desde que começou a atuar como presidente interino. Na época em que a carta foi publicada, Temer não havia tomado posse oficialmente, isso ocorreu apenas em agosto do mesmo ano, entretanto, a então presidenta Dilma Rousseff já havia sido afastada devido ao seu processo de impeachment, que foi iniciado no dia 12 de maio. Desde esse dia, Temer já anunciou algumas das medidas que pretendia tomar, e muitas delas afetavam os povos indígenas direta ou indiretamente. 

O primeiro ponto abordado na correspondência foi a Medida Provisória N° 726¹, medida que dispõe sobre organização da Presidência da República e dos Ministérios. A medida foi adotada por Temer em seu exercício do cargo de presidente, e em um dos seus artigos, ela determina a exclusão da Funai da estrutura governamental do Ministério da Justiça e Cidadania. Ademais, ocorreu também a exclusão do Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), também retirado da estrutura do Ministério da Justiça e Cidadania, ação que foi repudiada na carta, visto que o CNPI é um conselho fundamental para a proposição de prioridades e diretrizes para a política indigenista, tendo em sua formação a participação de diversos representantes indígenas que, mais do que ninguém, compreendem as demandas de suas comunidades e dos povos indígenas no geral, e que podiam, de maneira mais efetiva, propor políticas públicas que assegurassem os direitos dessa população.

No próximo ponto ressaltado na epístola, a APIB repudia a determinação do governo em reprimir direitos já conquistados pelos povos indígenas, e exemplifica mencionando a revogação de uma portaria que garantia o financiamento de milhares de Unidades Habitacionais garantidas pelo programa Programa Nacional de Habitação Rural – PNHR, programa criado através da Lei 11.977/2009, e que tinha como finalidade possibilitar que trabalhadores rurais, agricultores e comunidades tradicionais possuissem acesso à moradia. Evidentemente essa decisão impactou fortemente os indígenas, que compunham parte dos beneficiários do programa. 

É relembrado também que o governo Dilma, enquanto esteve em vigor, compriu o mandato constitucional de demarcação de terras, mesmo que timidamente. O governo assinou decretos de homologação de oito terras indígenas, publicou Portarias Declaratórias de 14 terras indígenas, entre outras ações que favoreciam a demarcação de terras. A APIB reitera que não aceitarão ter essas conquistas retiradas, e que qualquer tentativa de tal prática configuraria um ato inconstitucional, visto que a Constituição Federal de 1988 reconhece os direitos dos povos indígenas como direitos fundamentais. 

Além disso, ainda sobre as terras, é comentada a importância delas para os povos indígenas, afirmando que sem elas, correm risco de desintegração cultural e perda da identidade étnica. As terras são um assunto recorrente na maioria das cartas escritas por indígenas, e parecem ser grande parte do que significa lutar pelos direitos indígenas no Brasil e em outras partes do mundo, visto que as terras lhes foram roubadas durante a colonização e, no decorrer da história, continuaram sob ameaça para concretizar um plano de construção da nação que envolve etnocídio, glotocídio e genocídio, em nome de um país “civilizado” e “evoluído”. 

Em seguida, é mencionado como é de interesse da bancada ruralista que os direitos sobre as terras sejam revistos, e, como exemplo, a APIB cita que a bancada está determinada a aprovar a PEC 215/00², que consiste em delegar ao Congresso Nacional o dever de demarcar terras indígenas e quilombolas, e de ratificar terras já aprovadas. Isso tiraria o processo de demarcação das mãos do governo e da Funai, e entregaria exclusivamente ao Congresso, o que consequentemente traria influências da bancada ruralista na decisão acerca da demarcação. Ademais, existiam movimentos favoráveis à aprovação do marco temporal, o que também significaria legitimar a grilagem e inviabilizar a demarcação.

Um dos pontos recorrentes, não só nessa carta específica, mas em diversas outras cartas escritas por indígenas e endereçadas ao Brasil, é a maneira como o governo brasileiro, independentemente da época, promove, de forma consistente, o regresso em suas políticas públicas. Os povos indígenas permanecem, desde a colonização, em uma constante luta, não apenas para garantir sua sobrevivência e seu direito à vida, mas para assegurar que esses direitos não sejam pisoteados e revogados após serem conquistados. O histórico da política do Brasil demonstra todos os dias que não pretende que os direitos indígenas sejam permanentes, nem mesmo quando já são assegurados por lei. Isso se mostra na luta pelas terras, que mesmo quando já são demarcadas, ainda correm riscos de invasão, despejo e ameaças. Se mostra também no descaso pelos órgãos e associações que representam os indígenas no âmbito político, e que são constantemente sucateadas ou questionadas, e até nas relações de poder presentes no Congresso Nacional, uma vez que o governo muitas vezes tem como aliada a bancada ruralista, o que entra em conflito direto com os interesses dos povos indígenas. Assim, tendo em vista o histórico de regressos promovidos nesse país, torna-se ainda mais representativo o trecho em que a APIB afirma que “O Governo interino de Michel Temer, não pode esquecer que ainda há uma dívida histórica e ética que o Estado brasileiro precisa saldar com os povos indígenas, que seguem tendo seus modos de vida ameaçados e seus direitos negados em nome “da ordem e do progresso”.”.


¹https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2084401


²https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/especiais/55a-legislatura/pec-215-00-demarcacao-de-terras-indigenas



Texto de: Beatriz Rodrigues

Da APIB para Michel Temer

 Brasília – DF, 19 de maio de 2016.

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), instância nacional do movimento indígena, que congrega as organizações indígenas das distintas regiões do país, por deliberação do seu XIII Acampamento Terra Livre – Mobilização Nacional Indígena, realizado no último período de 10 a 13 de maio de 2016, que reuniu cerca de mil lideranças dos povos indígenas de todo o país, vem de público manifestar o seu veemente repúdio contra todos os ataques, ameaças e retrocessos tomados, anunciados ou indicados após a posse do presidente interino Michel Temer, por parte de sua equipe de governo. Os nossos povos e comunidades encontram-se apreensivos e em estado de alerta, portanto exigimos deste esclarecimentos e respeito às nossas reivindicações quanto aos fatos expostos a seguir:

  1. Exigimos explicações quanto aos reais motivos que levaram o novo Ministro da Justiça e Cidadania a excluir da sua estrutura governamental a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), conforme Medida Provisória N° 726, de 12 de maio de 2016, que dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios. Ressaltamos a importância do referido órgão indigenista, que tem como umas das principais responsabilidades coordenar o processo de formulação e implementação da política indigenista do Estado brasileiro, instituindo mecanismos efetivos de controle social e de gestão participativa, além de responder pela regularização fundiária – a demarcação e proteção das terras e territórios indígenas.

  1. Do mesmo modo, exigimos esclarecimentos quanto à exclusão do Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) da estrutura atual do Ministério da Justiça e Cidadania. O órgão é um colegiado paritário entre indígenas e órgãos do governo, responsável pela elaboração, acompanhamento e implementação de políticas públicas voltadas aos povos indígenas, criado recentemente através do Decreto N°. 8.593, de 17 de dezembro de 2015.

  1. Rechaçamos a determinação deste governo interino de regredir ou suprimir direitos conquistados, que atingem diversas áreas da nossa vida: na saúde e educação diferenciadas, na alimentação e moradia, entre outros. Repudiamos, por exemplo, a revogação da portaria que garantia financiamento para mais de 11 mil Unidades Habitacionais do Programa Nacional de Habitação Rural – PNHR, do Programa Nacional Minha Casa Minha Vida, em que diversas comunidades indígenas são diretamente impactadas. Muitas delas inclusive já haviam contratado as obras com a Caixa Econômica Federal e com a revogação da portaria essas construções ficaram comprometidas.

  1. O Governo Dilma promoveu nos últimos meses uma série de medidas que garantem o direito aos territórios indígenas, como a publicação dos Relatórios Circunstanciados de Identificação e Delimitação de 12 Terras Indígenas, a publicação de Portarias Declaratórias de 14 terras indígenas e a assinatura de Decretos de Homologação de oito terras indígenas. A APIB entende que o Governo Dilma cumpriu, mesmo que timidamente, apenas o mandato constitucional de demarcar as terras indígenas, ato administrativo de reconhecimento formal de direito originário. Governo nenhum cria terra indígena, reconhece apenas. Portanto, os povos indígenas jamais admitirão que o atual Governo interino revogue essas medidas. Do contrário, estará cometendo ato inconstitucional, uma vez que a Constituição Federal de 1988 alçou os direitos indígenas ao patamar de direitos fundamentais, portanto, cláusulas pétreas, que requerem blindagem constitucional. Rever ou regredir direito originário é e será sempre ato inconstitucional.

  1. Reafirmamos que a terra para nós significa Vida. E como já o reconhecera o Supremo Tribunal Federal, ”a questão da terra”representa o aspecto fundamental dos direitos e das prerrogativas constitucionais a nós assegurados e que sem acesso a ela, somos expostos “ao risco gravíssimo” da desintegração cultural, da perda da nossa identidade étnica, da dissolução de nossos vínculos históricos, sociais e antropológicos e da erosão da nossa própria percepção e consciência como povo. (Ver. Supremo Tribunal Federal. 1.ª Turma. Recurso Extraordinário n.º 183.188/MS. Relator: Ministro Celso de Mello. DJ 14.02.1997).

Por isso, os nossos povos e organizações não admitirão que nossos direitos sejam pisoteados ou revistos, como pretendem os principais membros da sua base aliada no Congresso Nacional – a bancada ruralista, que, movida por visões e atitudes marcadamente racistas, preconceituosas e discriminatórias, e sobretudo pela sua vontade de invadir e explorar os nossos territórios, estão determinados a aprovar a PEC 215/00 e legalizar a “tese do marco temporal”, em detrimento do direito originário dos nossos povos a suas terras, condenando-os ao agravamento de conflitos, perseguições, tentativas de dizimação, enfim, práticas etnocidas. Isso foi alertado, no último dia 16 do presente, pela relatora especial da ONU para os povos indígenas, Victoria Tauli Corpuz, em discurso proferido durante a 15a Sessão do Fórum Permanente da ONU sobre as questões indígenas (UNPFII).

Na contramão das decisões tomadas ou anunciadas por este governo interino, a APIB lembra que há ainda um passivo muito grande de terras, com processos finalizados, para serem demarcadas, mas que dormem nas gavetas do Executivo desde a Constituição, que definiu o prazo de 5 anos para este ato, até 1993. Dessa forma é responsabilidade governamental dar sequência à regularização fundiária das terras indígenas.

O Governo interino de Michel Temer, não pode esquecer que ainda há uma dívida histórica e ética que o Estado brasileiro precisa saldar com os povos indígenas, que seguem tendo seus modos de vida ameaçados e seus direitos negados em nome “da ordem e do progresso”.

Em razão de tudo isso é que repudiamos quaisquer tentativas de retrocesso em nossas conquistas, e exigimos respeito total aos nossos direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal e reconhecidos pelos tratados internacionais assinados pelo Brasil. Reiteramos, por fim, a determinação dos nossos povos e organizações indígenas de jamais desistir da defesa de seus direitos constitucionalmente garantidos, não admitindo retrocessos de nenhum tipo.

 ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL – APIB

 MOBILIZAÇÃO NACIONAL INDÍGENA

Fonte: https://racismoambiental.net.br/2016/05/20/carta-publica-da-apib-ao-governo-interino-de-michel-temer-nao-admitiremos-nenhum-retrocesso-nos-nossos-direitos/