Leitura da carta dos Baniwa e Apurinã para Bolsonaro


Os tempos mudam, os governos variam e nossos representantes políticos se alternam, mas a necessidade de seguir lutando por direitos sempre continua. Os povos indígenas exemplificam a importância dessa luta constante através de seu longo histórico de resistência, da colonização à ditadura, da república à redemocratização. Para muitos brasileiros, a palavra “genocídio” só passou a ter real significado no atual momento, em que vivemos uma crise sanitária e política, mas é difícil pensar em outra palavra para definir o processo colonizador que os povos indígenas ainda enfrentam, já que crise sanitária e a ameaça aos direitos básicos, à liberdade e à vida têm sido constante na história desses povos. 

Em reivindicação, os povos indígenas têm se manifestado de muitas formas e, através de cartas, buscam dialogar diretamente com o Estado brasileiro. Essas correspondências, publicadas por seus autores, surgem como denúncias e lançam outros olhares sobre a situação histórica e política do país. Em autoria, muitas vezes coletiva, se direcionam, por vezes, a uma instituição ou representante político em específico, porém movimentam em seu conteúdo e em suas práxis vocativas a metáfora de um destinatário mais amplo: o Brasil. 

Nesse texto, pretendo fazer uma leitura sobre uma das primeiras cartas escritas por indígenas após a posse de Jair Bolsonaro como presidente do Brasil e pensar como elas prenunciam os desmontes e reivindicações que, hoje, parecem urgentes a todos os brasileiro - um exemplo da luta desses povos e uma amostra do diálogo que flui entre pessoal e coletivo. 

De Manaus, no dia 2 de janeiro de 2019, os Povos Apurinã e Baniwa publicaram a primeira carta escrita por indígenas e endereçada ao atual presidente Jair Bolsonaro após sua posse. Na carta, Marcos Apurinã, do Povo Apurinã, André Baniwa e Bonifácio José, ambos do Povo Baniwa, rebatem posicionamentos do presidente eleito, reiteram a posição de autonomia de suas culturas e criticam a Medida Provisória (MP) de nº 870/2019, editada poucas horas depois da posse. 

Como uma de suas primeiras ações, Jair Bolsonaro assinou a edição que, entre outras medidas, transfere a Fundação Nacional do Índio (Funai), que até então encontrava-se no Ministério da Justiça (MJ), para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Além disso, a MP também retira da FUNAI uma de suas principais atribuições: gerir os processos de demarcação  de terras indígenas (identificação, delimitação, fiscalização e proteção das áreas demarcadas), passando a função para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, comandada pela líder da bancada ruralista Tereza Cristina. Tais medidas foram barradas pelo Congresso Nacional e pelo Poder Judiciário, no entanto apenas a proposição já era motivo de alerta. 

Por suas declarações anteriores, a alteração da MP não foi uma surpresa, no entanto, o que chamou a atenção foi a rapidez no processo, que foi considerado o primeiro passo para desencadear o curso de desmontes de políticas indigenistas, perseguição de áreas demarcadas e inviabilização de novas demarcações de territórios tradicionais. Na carta dos povos Baniwa e Apurinã são rebatidas declarações que se alinham a essa decisão: “Não é verdade que os povos indígenas possuem 15% de terras do território nacional. Na verdade são 13%, sendo que a maior parte (90%) fica na Amazônia Legal.” e “"Diferente do que o senhor diz de forma preconceituosa, também não somos manipulados pelas ONGs. As políticas públicas, a ação de governos e do Estado Brasileiro é que são ineficientes, insuficientes e fora da realidade dos povos indígenas e nossas comunidades", em referência a declaração feita por Bolsonaro em seu Twitter¹, além de “Não estamos nos zoológicos, estamos nas nossas terras, nossas casas [...] Somos pessoas, seres humanos, temos sangue como você, nascemos, crescemos, procriamos e depois morremos na nossa terra sagrada”, em resposta a outra das declarações de campanha.² 

Assim, apontam para a MP ao afirmarem que as mudanças “são uma completa desordem e um ataque contra a política indigenista Brasileira. Além de prejudicial, pretende inviabilizar os direitos indígenas que são constitucionais”, e quando pontuam que não aceitam e nem concordam com “suas” medidas, em referência ao governante, ainda que falem diretamente a ele (“temos sangue como você”), se colocam em diálogo aberto com a sociedade brasileira . 

Por ser uma carta aberta amplamente divulgada na mídia, essa primeira reação às políticas governamentais estiveram disponíveis para a análise pública e ao julgamento baseado em um senso comum. Talvez por prever possíveis reações ou apenas pela necessidade constante dos indígenas brasileiros de “provar” a legitimidade de suas identidades para serem reconhecidos, a sequência do texto antecipa uma resposta ao preconceito e dá uma aula de antropologia: “Não somos culpados de ter muitas mudanças em nossas vidas e em nossas culturas. Isso é fruto de um processo de colonização violento, que matou muitos povos e extinguiu línguas nativas.” e complementam apontando aos leitores: “O brasileiro quando sai para outros países e outros continentes continua sendo brasileiro”. 

Também chama atenção na carta um pedido muito simples: diálogo. Durante toda reflexão, os Baniwa e os Apurinã reforçam as afirmações de campanha sobre fazer valer a democracia, a defesa do diálogo e que não aceitariam ações ditatoriais - um discurso que ainda é presente e necessário em relação às políticas do atual governo. A carta encerra afirmando: “nós lideranças indígenas, representantes legítimas, estamos prontos para o diálogo, mas também estamos preparados para nos defender”, e assim, prenunciam uma necessidade que, atualmente, é geral: nos defender. 

Como uma das formas de defesa, os indígenas têm escrito manifestos políticos, em que se afirmam - por isso o início dessa carta é tão emblemático: “Já fomos dizimados, tutelados e vítimas de política integracionista de governos e Estado Nacional Brasileiro, por isso vimos em público afirmar que não aceitamos mais política de integração, política de tutela e não queremos ser dizimados por meios de novas ações de governo e do Estado Nacional Brasileiro” -, ao mesmo tempo que propõem uma discussão expandida sobre um outro olhar para os processos políticos brasileiros, que desafiam, inclusive, nossas compreensões sobre os usos do coletivo, quando assinam como Povo e quando direcionam reivindicações para representes, que deveriam ser propagadas por todo povo. Dessa forma, a carta a Bolsonaro, enviada logo após sua posse, é documento do enfrentamento não apenas a esse governo, mas a uma série de medidas históricas que culminam na necessidade constante de lutar e se defender. 


¹ https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1080468589298229253

² https://g1.globo.com/sp/vale-do-paraiba-regiao/noticia/2018/11/30/indios-em-reservas-sao-como-animais-em-zoologicos-diz-bolsonaro.ghtml


Texto de: Gabriel Amorim

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