Diversas são as motivações dos povos indígenas para escrever cartas endereçadas ao Brasil. Algumas das correspondências são convites para eventos e manifestações, outras pedem consciência dos não indígenas acerca da violência sofrida pelos povos indígenas, e muitas se tratam de notas de repúdio, onde, no caso da carta em questão, uma associação denuncia práticas tomadas pelo governo que sucateiam direitos indígenas já conquistados, algumas das vezes de maneira inconstitucional. Sendo assim, nesse texto, pretendo fazer uma leitura da carta escrita pela APIB, com o fito de ressaltar e proporcionar contexto acerca de algumas decisões do então presidente em exercício Michel Temer que revelam esse sucateamento.
O remetente da carta escrita a Michel Temer é a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, associação formada por diversas organizações indígenas regionais, e que compõe a extensa história de luta e resistência dos povos indígenas no território brasileiro. As demandas foram discutidas no XIII Acampamento Terra Livre – Mobilização Nacional Indígena, que ocorreu dos dias 10 a 13 de maio de 2016, período em que Temer fez algumas declarações com relação aos seus planos de governo.
Na carta publicada pela APIB no dia 1 de maio de 2016, a Articulação demonstra repúdio por falas e ações tomadas por Michel Temer desde que começou a atuar como presidente interino. Na época em que a carta foi publicada, Temer não havia tomado posse oficialmente, isso ocorreu apenas em agosto do mesmo ano, entretanto, a então presidenta Dilma Rousseff já havia sido afastada devido ao seu processo de impeachment, que foi iniciado no dia 12 de maio. Desde esse dia, Temer já anunciou algumas das medidas que pretendia tomar, e muitas delas afetavam os povos indígenas direta ou indiretamente.
O primeiro ponto abordado na correspondência foi a Medida Provisória N° 726¹, medida que dispõe sobre organização da Presidência da República e dos Ministérios. A medida foi adotada por Temer em seu exercício do cargo de presidente, e em um dos seus artigos, ela determina a exclusão da Funai da estrutura governamental do Ministério da Justiça e Cidadania. Ademais, ocorreu também a exclusão do Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), também retirado da estrutura do Ministério da Justiça e Cidadania, ação que foi repudiada na carta, visto que o CNPI é um conselho fundamental para a proposição de prioridades e diretrizes para a política indigenista, tendo em sua formação a participação de diversos representantes indígenas que, mais do que ninguém, compreendem as demandas de suas comunidades e dos povos indígenas no geral, e que podiam, de maneira mais efetiva, propor políticas públicas que assegurassem os direitos dessa população.
No próximo ponto ressaltado na epístola, a APIB repudia a determinação do governo em reprimir direitos já conquistados pelos povos indígenas, e exemplifica mencionando a revogação de uma portaria que garantia o financiamento de milhares de Unidades Habitacionais garantidas pelo programa Programa Nacional de Habitação Rural – PNHR, programa criado através da Lei 11.977/2009, e que tinha como finalidade possibilitar que trabalhadores rurais, agricultores e comunidades tradicionais possuissem acesso à moradia. Evidentemente essa decisão impactou fortemente os indígenas, que compunham parte dos beneficiários do programa.
É relembrado também que o governo Dilma, enquanto esteve em vigor, compriu o mandato constitucional de demarcação de terras, mesmo que timidamente. O governo assinou decretos de homologação de oito terras indígenas, publicou Portarias Declaratórias de 14 terras indígenas, entre outras ações que favoreciam a demarcação de terras. A APIB reitera que não aceitarão ter essas conquistas retiradas, e que qualquer tentativa de tal prática configuraria um ato inconstitucional, visto que a Constituição Federal de 1988 reconhece os direitos dos povos indígenas como direitos fundamentais.
Além disso, ainda sobre as terras, é comentada a importância delas para os povos indígenas, afirmando que sem elas, correm risco de desintegração cultural e perda da identidade étnica. As terras são um assunto recorrente na maioria das cartas escritas por indígenas, e parecem ser grande parte do que significa lutar pelos direitos indígenas no Brasil e em outras partes do mundo, visto que as terras lhes foram roubadas durante a colonização e, no decorrer da história, continuaram sob ameaça para concretizar um plano de construção da nação que envolve etnocídio, glotocídio e genocídio, em nome de um país “civilizado” e “evoluído”.
Em seguida, é mencionado como é de interesse da bancada ruralista que os direitos sobre as terras sejam revistos, e, como exemplo, a APIB cita que a bancada está determinada a aprovar a PEC 215/00², que consiste em delegar ao Congresso Nacional o dever de demarcar terras indígenas e quilombolas, e de ratificar terras já aprovadas. Isso tiraria o processo de demarcação das mãos do governo e da Funai, e entregaria exclusivamente ao Congresso, o que consequentemente traria influências da bancada ruralista na decisão acerca da demarcação. Ademais, existiam movimentos favoráveis à aprovação do marco temporal, o que também significaria legitimar a grilagem e inviabilizar a demarcação.
Um dos pontos recorrentes, não só nessa carta específica, mas em diversas outras cartas escritas por indígenas e endereçadas ao Brasil, é a maneira como o governo brasileiro, independentemente da época, promove, de forma consistente, o regresso em suas políticas públicas. Os povos indígenas permanecem, desde a colonização, em uma constante luta, não apenas para garantir sua sobrevivência e seu direito à vida, mas para assegurar que esses direitos não sejam pisoteados e revogados após serem conquistados. O histórico da política do Brasil demonstra todos os dias que não pretende que os direitos indígenas sejam permanentes, nem mesmo quando já são assegurados por lei. Isso se mostra na luta pelas terras, que mesmo quando já são demarcadas, ainda correm riscos de invasão, despejo e ameaças. Se mostra também no descaso pelos órgãos e associações que representam os indígenas no âmbito político, e que são constantemente sucateadas ou questionadas, e até nas relações de poder presentes no Congresso Nacional, uma vez que o governo muitas vezes tem como aliada a bancada ruralista, o que entra em conflito direto com os interesses dos povos indígenas. Assim, tendo em vista o histórico de regressos promovidos nesse país, torna-se ainda mais representativo o trecho em que a APIB afirma que “O Governo interino de Michel Temer, não pode esquecer que ainda há uma dívida histórica e ética que o Estado brasileiro precisa saldar com os povos indígenas, que seguem tendo seus modos de vida ameaçados e seus direitos negados em nome “da ordem e do progresso”.”.
¹https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2084401
²https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/especiais/55a-legislatura/pec-215-00-demarcacao-de-terras-indigenas
Texto de: Beatriz Rodrigues
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