Thuëyoma

Cristina Araripe Fernandes¹


Neste texto, percorro a trilha da personagem Thuëyoma, a quem Davi Kopenawa nos apresenta no filme A última floresta (Kopenawa; Bolognesi, 2011) e na obra A queda do céu: palavras de um xamã Yanomami (Kopenawa; Albert, 2015), como a esposa de Omama e a mãe do povo Yanomami. Não tenho interesse em questionar a verdade da narrativa, nem a tratar como mito, mas evidenciar como os modos de contar uma história podem ressignificar o que é narrado quando mudamos o foco sobre as figuras em cena. Embora este texto possa ser lido e visto sem contato prévio com as obras citadas, recomendamos ao legente um mergulho na estrutura dramática da mulher ancestral, conforme esboçada no livro e no filme.



Em A última floresta (2021), filme dirigido por Luiz Bolognesi, o xamã Davi Kopenawa Yanomami nos conta que os irmãos Omama e Yoasi já existiam, e copulavam na barriga da perna e atrás do joelho. A perna de Yoasi gerou um menino que, após o nascimento, passava o dia no cesto, chorando sem parar. Omama e Yoasi olhavam para ele, aparentemente sem saber o que fazer com aquela criança. Certo dia, Omama saiu para pescar e, ao jogar o cipó na lagoa grande, foi surpreendido por uma mulher, que depois de apanhar o cipó, caminhou nas águas em direção ao rapaz. Sentados, lado a lado, Omama e o ser-peixe que assume a forma de uma mulher quando sai das águas, conversaram e, por fim, brincaram na rede. 

Ao voltar para casa, Omama é interpelado por Yoasi, que pergunta a ele sobre a carne da caça. Omama diz que não encontrou nada. Afoito, Yoasi diz que ele tem cheiro de mulher, e que Omama sabe muito bem que ele também quer. Omama afirma que Yoasi também pode encontrá-la, e conta que a mulher vive no fundo da lagoa grande. Enquanto Yoasi corre em disparada para a lagoa grande, Omama se deleita com o fato, e ri do irmão.

Tempos depois, ao reencontrar o ser-peixe em forma de mulher, Omama pergunta o motivo dela parecer tão triste, ao que o ser-peixe em forma de mulher responde que é por causa de Yoasi, que depois de ter tido relação com ela, a deixou triste. “– Ele tem o pênis disforme, me machucou. Não foi carinhoso como você. Não se aproximou primeiro de mim. Não fez relação devagar”. 


Chove e troveja na lagoa grande. Omama vira o rosto ao ouvir o relato da violência sofrida pelo ser-peixe em forma de mulher. Um profundo silêncio se coloca entre eles, até que o ser-peixe em forma de mulher, sem dizer uma palavra, mergulha em suas águas e desaparece. 

Omama, de flecha em punho, procura por Yoasi na floresta, até que o encontra remodelando o pênis na pedra. “– Onde está seu filho?”, pergunta Omama a Yoasi, que responde tê-lo entregado aos espíritos maléficos porque o menino chorava muito. Furioso, Omama quer saber, por que Yoasi feriu o ser-peixe em forma de mulher, e por que entregou a criança ao espírito maléfico? Antes que o insolente Yoasi respondesse, Omama o expulsa das terras que agora nomeia como suas, ordenando que o irmão procure outro lugar para viver, pois não pertence mais àquele lugar. Omama, diz ainda que, a partir de agora, Yoasi não é mais seu irmão, porque trouxe a doença para essa terra. “– Não te quero aqui!”, grita Omama, “– Você feriu o ser-peixe em forma de mulher”. Yoasi se levanta, guarda o pênis e, sem resistir, parte.

Como só existiam esses dois homens, com a partida de Yoasi, agora criador da morte, Omama se torna o protetor do povo Yanomami. Enquanto isso, a morte criada por Yoasi, passa a dormir na árvore Potoporisiki, onde o espírito do tucano pousa, e chora. 

Kopenawa nos conta que foi com o tucano que aprendemos a chorar quando alguém morre.

O filme avança. Em uma das cenas, vemos a professora, escritora e artista plástica, Ehuana Yaira Yanomami, desenhando, cercada por um grupo de crianças que querem saber sobre aquela mulher que vai surgindo no papel. 


– Ela mora nas águas? 

– Sim, responde Ehuana, ela mora no fundo da água. 

– Ela não se afoga? Perguntam, curiosas, as crianças. 

Thuëyoma não se afoga. É a casa dela. É o mundo das águas, responde 

               enquanto o desenho vai ganhando vida. 

– É muita água? As crianças insistem. 

– Tem bastante água limpa onde Thuëyoma mora, responde Ehuana, sem 

    interromper seu desenho. 

– Tem terra também onde ela mora? E dá para amarrar a rede?  

– Tem tudo igual aqui.


E assim, como as crianças, aprendemos o nome daquela mulher e somos levados ao mundo de Thuëyoma. Mas quem é essa mulher que vem das águas como um ser-peixe? Segundo Kopenawa é “a vagina de onde saíram os Yanomami”, “a esposa de Omama”. “Os Yanomami são filhos de Omama e Thuëyoma, viemos do mesmo sangue” (2021), diz o xamã. Mas quem era e o que fazia Thuëyoma, antes de ser <a esposa> de Omama e <a vagina> de onde saíram os Yanomami?  Por que os xamãs fazem descer a sua imagem? Por que o ser-peixe Thuëyoma se deixa capturar na forma de uma mulher (p.82)?

Ao longo do texto, destacaremos algumas variações entre as narrativas do livro A queda do céu: palavras de um xamã Yanomami (Kopenawa; Albert, 2015) e a história contada no filme, o que é comum em traduções intersemióticas. 

Na obra, Kopenawa nos conta que não havia nenhum ser humano além de Omama e Yoasi. Por outro lado, parece que os irmãos já tinham consciência da existência das mulheres, como quando Omama relata que esteve com <a mulher das águas>, ou quando Yoasi afirma que o irmão <cheira à mulher e sabe que ele também quer>. Mulher, que ambos só teriam contato muito mais tarde, segundo o xamã. 

Dentre as atribuições conferidas aos “seres femininos das águas”, o xamã descreve as magias do amor. Há várias passagens que retratam a função desses personagens, como quando os seres-peixes em forma de mulheres levam os adolescentes caçadores para suas casas no fundo do rio (p. 101). O povo das águas é caçador, como nos conta Kopenawa, assim, quando estes rapazes têm a floresta no pensamento, apaixonam-se pelos seres-peixes que assumem a forma de mulher, e estas, por sua vez, admiram-nos como verdadeiros habitantes da floresta. O estado de sonho do xamã é alimentado pelo poder de atração exercido pelos espíritos das águas. Uma confluência entre mundos que se tocam e viram outros, sem perder os contornos do que os define. 

Antes do encontro com a primeira mulher, Omama copulava na dobra do joelho do irmão, Yoasi, com quem teve o primeiro filho². Os Yanomami parecem não ter parentela com essa criança, já que Kopenawa afirma que eles, habitantes da floresta, não nasceram assim, ou seja, da relação incestuosa entre dois irmãos. Na primeira referência feita no livro ao ser-peixe em forma de mulher, Kopenawa explica que o povo Yanomami saiu da vagina de Thuëyoma, esposa de Omama, e cuja imagem, os xamãs fazem descer. 

De acordo com a descrição do xamã, a vontade de Thuëyoma parece determinada por outros, seja no mundo das águas, onde figura como filha e irmã, ou na terra-floresta como vagina e esposa.  O desejo de Thuëyoma é narrado de modo passivo. Embora Thuëyoma ache Omama bonito, ela se deixa tirar do mundo das águas, aparentemente atraída pelo feitiço amoroso na ponta de um cipó lançado por Omama. 

Embora Kopenawa diga que as gentes das águas [um universal para todos os seres das águas] são os donos da floresta e dos cursos d’água, a história é contada na perspectiva do masculino. Quando o xamã afirma “essa gente das águas se parece com humanos, têm mulheres e filhos, mas vivem no fundo dos rios, onde são multidões” (p. 102), vemos que ele se refere aos humanos como os homens, que têm mulheres e filhos.

Mas, afinal, quem preparou o feitiço amoroso e o deu a Omama para pescar uma mulher? O próprio Omama teria conhecimento sobre os encantamentos do amor e preparado, ele mesmo, essa magia? Por que Thuëyoma precisaria ser enfeitiçada para sair das suas águas se transitava entre os dois mundos, a floresta e as águas? Caso Omama não tivesse pescado Thuëyoma na lagoa grande, os homens continuariam a acasalar com outros homens na barriga da perna e atrás do joelho, dando origem a uma sociedade formada apenas por homens?  Se copulavam entre si, por que sentiam desejo por um ser feminino que aparentemente não existia? Durante quanto tempo durou o intercurso sexual entre os irmãos como regra? Como seria contada a história de um mundo constituído apenas por homens? O que impedia Omama de ter tido contato com os seres-peixes em forma de mulheres antes de acasalar com o irmão? 

“Eram os deuses astronautas?” Com essa pergunta, que também é o título de um livro do ano 1968, escrito pelo suíço Erich von Däniken, o autor desenvolve uma teoria sobre alienígenas serem o protótipo de antigas civilizações terrestres, presunção que Krenak ironiza, referindo-se ao fato de que os napëpë [não indígenas, estrangeiros, inimigos] preferem inventar uma história, do que admitir as extraordinárias habilidades dos povos originários em produzir maravilhas e deixar vestígios de antigas civilizações. 

Quando lemos na narrativa do xamã sobre a formação do seu povo, na qual Thuëyoma figura como <filha do monstro>, <esposa de Omama> e <vagina de onde saíram os Yanomami>, temos a impressão de que as mulheres são <personagens alienígenas> (lat.: alienígena, estrangeiro, estranho), com vida e função designada pelos homens, que, por sua vez, são os inventores das histórias que aprendemos, sejam elas mundiais, nacionais ou até mesmo indígenas. 

Como será que as mulheres contariam as histórias dos mundos, visível e invisível, humanes e não humanes? Será que elas descreveriam suas vidas na perspectiva de vaginas que parem e esposas de homens que lhes dizem como o mundo funciona e quem as mulheres são, ou podem ser?

No livro do xamã, mesmo entre os seres das águas, parece existir um sistema de hierarquia e organização familiar patriarcal, sendo Tëpërësiki, o monstro do mundo subterrâneo, pai das gentes das águas, com quem filhos e filhas permanecem morando. Thuëyoma é filha de Tëpërësiki, sogro de Omama e demiurgo dos Yanomami. Como será que se deu o nascimento de Tëpërësiki? Não há no texto nenhuma menção a uma mulher monstro do mundo subterrâneo, anterior ou contemporânea de Tëpërësiki, e que tenha se tornado, posteriormente, a mãe do povo das águas. 

A própria noção de demiurgo, repleta de atributos, parece estar sempre nas mãos dos homens, conforme nas histórias que aprendemos. Inclusive, na passagem narrada no livro, Omama “pega uma dessas mulheres pelo braço” (pg. 102), essa frase faz remessa a outra, contada em narrativas antigas e deformadas histórias, como a da avó – “pega pelo laço”.  Enfeitiçada pelo encantamento do cipó e pelo bom cheiro e beleza de Omama, Thuëyoma se deixa tirar das águas, não cabendo a ela uma atitude ativa no ritual da conquista. Essa perspectiva da história foi dada ao xamã por seu sogro, e assim segue sendo contada como <a> história de fundação do povo Yanomami. 

Até hoje, as filhas de Tëpërësiki tem a função de fazer os rapazes cheirarem os feitiços amorosos, quando capturam suas imagens para que se tornem outros. Os critérios de escolha das mulheres-peixe, segundo a narrativa, dizem respeito à valentia e ao cuidado, beleza, cheiro da pele, língua, peito e pênis dos homens. Um repertório de habilidades e estéticas que interseccionam histórias de mulheres, indígenas e não indígenas, humanes e não humanes, esperando-se delas que dominem as artes da atração e da transformação dos outros para manutenção das espécies planetárias. 

Já os Xapiri, guardiões da floresta, alimentam-se de yãkoana por intermédio dos xamãs, como nos conta Kopenawa, e quando fazem a coreografia de apresentação, mimetizam as imagens dos ancestrais animais de Omama e Thuëyoma e dos demais seres-peixes em forma de mulheres (p.176). Canto e dança não são meras encenações dos Xapiri, mas espaços performativos nos quais o duplo de cada um adquire materialidade e participa da criação de mundos e cenários. Nesse encontro entre duplos, até mesmo a yãkoana goza da existência de ter um pai, Yãkoanari. Mas quem é a mãe da yãkoana? Segundo a narrativa do xamã, antes do atravessamento dos mundos feito por Thuëyoma os intercursos sexuais se davam entre os homens, que, por sua vez, geravam outros homens. Sendo assim, como poderia Yãkoana ser um ser feminino sem a presença de uma mulher?  

A ausência das personagens femininas na contação da história de fundação de um povo, acaba por enaltecer a figura dos homens em detrimento da existência das mulheres, que não desejam o lugar dos homens, mas poderiam m gozar de uma relação de parceria equânime e respeitosa, que possa estar refletida não somente nas rodas de conversa e escuta profunda, como também na elaboração de cosmovisões e narrativas fundacionais. 

No intercurso sexual, quando as mulheres têm a vulva comida pelo marido xamã, como nos diz Kopenawa (p.101), os filhos são concebidos pelo esperma dos Xapiri do esposo. O que faz com que esses filhos tenham um nascimento distintos dos demais é o esperma sagrado que alcançará um óvulo sem destaque, de uma mulher sem nome e que engravidará para que da sua vagina continuem a nascer filhos de xamã. 

Kopenawa descreve que no período do transe, não pensa nem nos filhos e nem na vulva de sua mulher (p.101), já que está sob efeito da magia do amor das mulheres-peixe. Assim, ao longo de toda a narrativa do livro, o prazer é descrito na perspectiva do masculino: 


(...) a vagina da esposa (p.82); muitas irmãs e muito bonitas (p.102); os lindos olhos e a vulva bem curta, sem pelos pubianos (p.105); rindo com uma vozinha doce (p.106); dominado por inteiro pela magia daquela filha de Tëpërësiki (p.106); as moças vieram uma por uma, rindo, deitar na minha rede para brincar comigo (p.108); nossas esposas, e até nossas filhas moças, parecem bem feiosas em comparação com as mulheres espírito, que são capazes de fascinar e provocar ciúmes em todos os Xapiri (p.127); eu via com clareza os jovens seios despontando (p.431). 



Não teriam também as mulheres Yanomami, o direito de ser personagens centrais no espaço narrativo de uma obra que conta com tanta riqueza de detalhes o nascimento de um povo e as relações que são estabelecidas entre os mundos? 

Outro aspecto relacionado às mulheres, diz respeito ao fato de embora pertencerem a um povo de exímios caçadores, os filhos das águas têm uma interdição em relação às presas dos animais flechados, que consideram assustadoras e não devem ser comidas pelos homens, que as oferecem às suas irmãs (p. 102). Por que será que os valentes espíritos-homens consideram as presas assustadoras? Por que são as mulheres, que figuram em ordem de sujeição na relação intersseres e na narrativa, que devem ser as cuidadoras dessas presas? Por que são as mulheres que cuidam daquilo que causa ameaça aos homens?

Em outro transe do Kopenawa, ele é levado a caçar papagaios para um imponente ser masculino das águas que está faminto. Após flechar uma quantidade significativa de papagaios, o ser das águas nomeia o xamã de cunhado, e informa que a irmã virá buscar as presas das caças (p.106).  Com a chegada da irmã do ser das águas, Kopenawa, sob encantamento da magia, é levado a correr pela floresta, até que chega à casa de Tëpërësiki, pai da moça. Enquanto os homens descansavam ao lado do pai, as moças recebiam a irmã e Kopenawa com alegria e demonstração de amizade, mas são censuradas pelos irmãos, alegando que aquela algazarra acabaria por acordar o pai (p.108).  

A cena de proteção ao sono do pai está presente em diferentes narrativas familiares, originárias e napëpë, mas até hoje, não tivemos contato com registros que tratem sobre o zelo pelo sono das mulheres nos ambientes caseiros, o que pode ser uma evidência de que entre a floresta e o espaço urbano existem semelhanças narrativas. 

Ainda no livro, encontramos o que parece ser um lapso informativo e temporal na narrativa do xamã. Kopenawa nos conta que Thuëyoma, a quem os xamãs também chamam de Paonakare, vivia na floresta com o marido Omama e seu irmão, Yoasi, quando ainda não existiam os brancos (p.222). 

Sendo assim, teria Omama sido conivente com Yoasi ao tolerar o estupro de Thuëyoma? Será que mesmo na condição de espíritos, as mulheres estariam sujeitas às mesmas violências por serem mulheres? Como será que as mulheres Yanomami do século XXI escutam e recontam a história de Thuëyoma? Será que a violência contra a mãe ancestral dos Yanomami é tema nas rodas de mulheres no Hereamu, quando o povo se encontra no pátio central da casa para tratar dos assuntos que os incomodam, debater sobre contextos importantes e entender as situações que causam dor a si e a outrem? Será que as mulheres Yanomami, tão preocupadas com o destino de suas filhas no círculo de assédio, aliciamento e prostituição alimentado pelo garimpo e ilegal, agenciado, inclusive por homens Yanomami, enredados por álcool, cocaína e ouro oferecido pelos garimpeiros, fazem conexões entre a violência sofrida pela mãe ancestral e as violências vividas pelas avós, mães, filhas e netas de Thuëyoma com a chegada dos napëpë e tudo o que daí resultou?    

A mais velha das três filhas de Kopenawa entrava facilmente em estado fantasma como o pai, o que despertava o interesse dos Xapiri por ela. Quando criança, antes de menstruar, como nos conta Kopenawa, pedia ao pai que mais tarde dessa a ela o pó de yãkoana, pois desejava ver a beleza dos espíritos como seu genitor. Entretanto, o xamã nos diz que sua filha mais velha “agora é adulta e está casada. Talvez ainda sonhe com os espíritos, mas não fala mais nisso. Seu pensamento está ocupado com muitas outras coisas” (p. 97).  

Será que um homem, como é o caso do próprio Davi Kopenawa, que sonhava com os espíritos Xapiri desde que era uma criança, como sua filha, renunciaria à possibilidade de se tornar um xamã em virtude da adultez, do casamento e da paternidade? Quem são as mulheres xamãs do povo Yanomami e como contam as suas histórias com o mundo dos espíritos? Será que são também encantadas pelas magias do amor e atraídas a sonhar pelos seres masculinos das águas? Teriam os seres masculinos das águas a atribuição de encantar as futuras xamãs?

Há aproximadamente um ano, no dia 4 de fevereiro de 2023, durante a abertura da exposição “A luta dos Yanomami”, da fotógrafa Claudia Andujar, exibida no Centro Cultural The Shed, em Nova York, em uma parceria entre The Shed e Fundação Cartier com o Instituto Socioambiental (ISA), Ehuana Yaira Yanomami, que também é nora de Kopenawa, dirige-se ao secretário-geral das Nações Unidas, Antonio Guterres, sob o olhar de Davi Kopenawa Yanomami e Bruce Albert. Com a ajuda da tradutora, a antropóloga Ana Maria Machado, Ehuana Yaira Yanomami diz o seguinte ao secretário: 


EYY – Eu quero que vocês nos apoiem. Não quero que os nossos filhos fiquem morrendo o tempo todo. Tem muita malária, então queremos que vocês tirem os garimpeiros da nossa terra! Então, por causa disso, eu fico muito preocupada: os garimpeiros passaram a morar muito perto de nossas casas. Aliciam os jovens, eles querem transar com as nossas filhas. Eu não aceito isso de forma alguma! Por isso, quero que vocês mandem para longe os garimpeiros. Não queremos que os garimpeiros fiquem morando perto de nós na Terra Indígena Yanomami! Nós queremos viver bem entre nós mesmos. Então era isso o que eu queria lhe dizer, já que a nossa terra se tornou muito suja. Nós estamos sofrendo, algumas crianças estão sofrendo com desnutrição severa, por causa disso eu estou muito preocupada, pois a nossa terra está muito suja e os garimpeiros são muito próximos. Por eu estar muito preocupada com isso, estou falando com você, que é autoridade. Há muito tempo, meu sogro Davi [Kopenawa], Claudia Andujar e Bruce [Albert] lutaram muito e as coisas se tornaram melhores. Logo que a demarcação foi feita foi muito bom, mas hoje em dia está terrível, já que eles destruíram. 


AG– Infelizmente, sei que não só na vossa zona como em outras zonas, os garimpeiros estão a fazer não só um terrível ataque às comunidades, como a destruir a natureza. Então, o objetivo fundamental... quando estive com o presidente do Brasil, uma das coisas que discutimos foi precisamente a necessidade de retirar os garimpeiros, combater o garimpo.


Ao elencar a narrativa do xamã sobre Thuëyoma e outras mulheres-peixe,  escutar as preocupações de Ehuana Yaira Yanomami e pensar na ironia de uma exposição sobre os Yanomami que acontece sob os auspícios da The Shed e do Museu de Arte Fundação Cartier [para entender melhor a questão, recomendamos a leitura da matéria no link da nota de rodapé],  fui remetida à fala de Sojourner Truth ( Mara, não tem o t final)(1797-1883), quando em 1851, na Convenção dos Direitos das Mulheres de Ohio em Akron, dirige à audiência a seguinte pergunta: 


“E eu, não sou uma mulher?”



Referências

KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. 


KOPENAWA, Davi; BOLOGNESI, Luiz. A última floresta (filme). SP: Buriti Filmes, 2021. 


VON DÄNIKEN, Erich. Eram os deuses astronautas? Tradução de Else Graf Kalmus. SP: Melhoramentos, 2013. 



Notas

¹ Mestra e doutoranda em Literatura e Cultura (PPGLitCult/UFBA).
² Conforme descrito em A queda do céu: palavras de um xamã Yanomami (Kopenawa; Albert, 2015) nota 8, do capítulo 2, p. 614: “sobre o nascimento do filho de Omama, ver M 22. Davi Kopenawa às vezes chama esse filho de Pirimari, que é também o nome da “estrela” que os Yanomami chamam de “genro da lua”, o planeta vênus. 
³ Cartier criticada por usar imagem de tribo amazônica devastada pela mineração ilegal do ouro. Disponível em: https://br.fashionnetwork.com/news/Cartier-criticada-por-usar-imagem-de-tribo-amazonica-devastada-pela-mineracao-ilegal-de-ouro,1517817.html#giorgio-armani-priv%C3%A9
Sobre Sojourner Truth. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2018/11/26/angela-davis-a-potencia-de-sojourner-truth/. Acesso 21 jan. 2024.




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